São Paulo, domingo, 28 de abril de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A pura energia de um amor de perdição

JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Christopher Hampton estréia no cinema com o pé direito. "Carrington" é um filme fora de série. Antes desta primeira experiência como diretor, Hampton fez o roteiro de "Ligações Perigosas", de Stephen Frears, a partir de uma peça de sua autoria, baseada no clássico de Choderlos de Laclos. Já então emergia a qualidade de seu talento. Fazendo do genial moralismo de Laclos uma análise seca da vida de corte, Hampton anunciava "Carrington".
"Ligações Perigosas" conclui-se com a marquesa de Merteuil enfrentando corajosamente a humilhação que lhe fora imposta pelos pares aristocratas. Embora derrotada, ela manteve-se fiel à crença na imagem do mundo como teatro de aparências, desafiando o moralismo sentimental que se tornaria historicamente vencedor. O que em Laclos era signo de maldade e ressentimento tornava-se, em Hampton, lealdade à tradição. O apelo romântico passava ao segundo plano. O enigma das "Ligações Perigosas" era a paixão por um estilo de vida moribundo que conseguira dobrar a força do amor burguês.
"Carrington" leva ao paroxismo a insensatez de Merteuil. A história é desnorteante. Carrington, a personagem central, apaixona-se por Lytton com uma dedicação cega. Lytton morre e Carrington abre mão da vida como quem joga fora uma muleta sem utilidade. O episódio foi real, e parece tanto mais extravagante quanto Lytton não tinha interesse sexual por mulheres. Como entender o despropósito, o sem-sentido de um amor tão estranho. O que queria Carrington? Qual o desejo de uma mulher que não se contenta apenas em ser mãe, amante, esposa ou artista e quer amar o outro com um amor alucinado que pede somente para ser reconhecido como amor?
Para nossa mentalidade, saturada de Rousseau ou do freudismo de manual, não faltam explicações: loucura histérica, loucura a dois; masoquismo feminino; masoquismo moral; erotismo da coisa real; gozo que não se inscreve na castração; fusão simbiótica; psicose branca; erotomania; "homossexualidade latente" etc. Talvez alguma coisa disto tudo tivesse, de fato, existido. Mas não é o que interessa a Hampton. Seu objetivo não é o de explicar as razões da desrazão. O importante é seguir o ritmo deste amor desmesurado.
Carrington desconcerta porque não é o outro familiar. Sua vida não tem o fascínio literário de vidas trágicas nem exemplifica o sofrimento miúdo das heroínas de folhetim. A paixão que experimenta não é feita de gestos gregos ou de soluços ao pé do ouvido. Do mesmo modo, seu amor nem é edificante nem escandaloso; é canino na constância, místico na intensidade, sereno no excesso e por isso mesmo não busca encontrar precursores ou fazer seguidores. Carrington entrega-se a ele num claro delírio, sem chance de passo atrás. O que ela sentia -ela sabia- era único, desoladoramente único. Só Lytton podia entender e receber o que ela tinha para dar.
Numa verdadeira genealogia cinematográfica da moral, Hampton observa, atônito e maravilhado, o milagre do evento irrepetível. A vida, em sua variação cega, criou um amor sutil, improvável, imprevisto e que, no entanto, aconteceu. Carrington e Lytton apegam-se um ao outro como hera em paredão. Aquele amor, mostra Hampton, é pedido e doação; alienação e individuação; zero e infinito. Perto de Lytton, Carrington sonha, pinta, ri, sai de férias, casa, descasa, faz amor e amizades; longe dele, esquece de si, pensa em negro, estanca o fluxo da alma até revê-lo e voltar a viver. Um amor tão grande, voraz e silencioso é uma afronta às paixões que aprendemos a idolatrar. Nosso imaginário amoroso é brasa dormida diante deste incêndio.
Enfim, como sabemos, um dia tudo passa. Lytton não é mais; Carrington não quer mais ser. Começa o ritual de despedida. O andamento do filme muda. O tema de amor estreita-se, retomado por lembranças que se atropelam. Pouco a pouco, tudo é abandonado: esperanças, desejos, lágrimas e, finalmente, palavras. "Sem, ti, diz ela, escrevo num livro em branco, choro num quarto vazio". Depois é só música. A câmara de Hampton fala dor, seu intérprete é Schubert. O adágio do quinteto para cordas invade a tela. Cada nota é a legenda do que é visto sem poder ser dito. A doçura do cantabile é o fim da partida; seu último significante, um estampido.
No Ocidente inventamos o amor a Deus, o amor-paixão, o amor-sexual etc, todos produtos de fantasias masculinas. Depois do romantismo, sobretudo, estas figuras do amor condensaram-se num sentimentalismo que calou por muito tempo as vozes das mulheres.
Agora Hampton traz à luz uma inusitada manifestação do amor feminino. Esta devoção rebelde que recusa consolo ou objeto substituto; este amor sem dívida, culpa ou temor de transgressão; este impulso para perder-se no outro e só assim viver, não é sacrifício, padecimento, passividade ou submissão. É atividade pura; é pura energia expansiva; é puro milagre da linguagem; é puro clamor nietzscheano: "A grandeza do Homem é que ele é uma ponte e não um termo; o que podemos amar no Homem é que ele é transição e perdição". Carrington amou assim; viveu assim; morreu assim. O que pode querer uma mulher? Dentre os homens, mostra Hampton, só Lytton pôde aceitar um dom de amor oferecido no feminino singular.

E-mail jfreirecosta@ax.ibase.org.br

Texto Anterior: O anjo esquerdo da história
Próximo Texto: A trajetória de um revolucionário
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.