São Paulo, domingo, 28 de abril de 1996
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A trajetória de um revolucionário

AMIR LABAKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Foi durante uma viagem ao Brasil em 1991 que o cineasta cubano Tomás Gutiérrez Alea (1928-1996), sentindo fortes dores nas costas, viu diagnosticado o câncer pulmonar que o vitimou no último dia 16. A morte de "Titón", como era conhecido por amigos e admiradores, simboliza o fim de uma era. Alea esteve por trás dos mais fecundos momentos de criação cinematográfica no campo da ficção desde que Fidel Castro assumiu o poder, lá se vão 37 anos.
Alea abandonou a paixão inicial por música e o canudo de bacharel em direito em favor dos estudos no "Centro Sperimentale di Cinematografia" de Roma. Seu primeiro longa, "Histórias da Revolução" (1960), dramatiza três episódios da guerrilha revolucionária, marcando a descoberta internacional do novo cinema cubano. "A Morte de um Burocrata" (1966), seu quarto longa ficcional, já ironizava por dentro a bolchevização do regime castrista.
Caso singular é "Memórias do Subdesenvolvimento" (1968), que eleva a dramaturgia do cinema político a raríssima complexidade, ao se deter nos dilemas de um intelectual diante da revolução.
É um dos poucos clássicos indiscutíveis produzidos na América Latina.
O cinema de Alea só iria reconquistar a devida atenção mundial em 1993 com "Morango e Chocolate". Já debilitado pelo câncer, Alea dividiu com seu fiel colaborador Juan Carlos Tabío a co-direção da mais popular produção da história de Cuba.
Um esplêndido roteiro (tradição na obra de Alea) sustenta um belo e divertido libelo pela tolerância, a partir do encontro entre um homossexual e um jovem militante na Havana dos anos 80.
Recordista de bilheteria em Cuba, sucesso de Madri a Tóquio, premiado de Havana a Berlim e até indicado ao Oscar de filme estrangeiro, "Morango e Chocolate" poderia ter sido o glorioso canto de cisne de Alea. Cabra marcado para filmar, "Titón" aliou-se ainda uma vez a Tabío para realizar "Guantanamera", o longa definitivo sobre a grave crise cubana pós-1989, com lançamento nacional previsto para julho próximo.
Encontrei Tomás Gutiérrez Alea pela primeira vez no início de dezembro de 1993, logo depois da disputadíssima entrevista coletiva realizada no dia seguinte ao lançamento consagrador de "Morango e Chocolate" na abertura do 15º Festival do Novo Cinema Latino-Americano de Havana.
Cansado, mas visivelmente feliz, com sua esquelética elegância não deixando dúvidas sobre o impacto avassalador da doença que o consumia, "Titón" não pestanejou em acompanhar-me a uma sala ao lado para conceder uma entrevista exclusiva.
Pedi a "Titón" um depoimento histórico sobre seus primeiros passos no cinema e sua relação com algumas personalidades. Alea lembrou sua parceria de juventude com o fotógrafo Néstor Almendros (1930-1992), criticou a guinada oposicionista do ex-colaborador e frisou a originalidade do documentarismo de Santiago Álvarez. Por fim, descreveu com ternura a amizade que manteve com Glauber Rocha (1939-1981).
A Folha publica abaixo um resumo dessa entrevista, até agora inédita.
*
Folha - Qual foi a real importância da sociedade cultural "Nuestro Tiempo" para o início da carreira dos principais cineastas cubanos a partir da Revolução?
Tomás Gutiérrez Alea - Essa sociedade nasceu no princípio dos ano 50. Reunia um grupo de jovens ligados à cultura em geral. Havia uma seção de cinema, mas também uma de literatura, teatro, pintura, música etc. Na de cinema, especificamente, as atividades eram majoritariamente de cineclube. Assistíamos a filmes que conseguíamos da maneira que era possível. Uma vez a Cinemateca Francesa nos emprestou alguns. Conseguimos filmes da era muda, como os primeiros títulos de Mélis, Lumière, e um músico cubano, Juan Blanco, tocava o piano como acompanhamento. Fazíamos também conferências. Num certo momento fomos tentados a fazer nós mesmos um filme. Foi em 1955. Reunimos algum dinheiro, uma câmera de 16mm e todos buscamos um tema. Fizemos "El Mégano", que foi dirigida por Julio García Espinosa. Dela participou o grupo que viria a se reunir no Icaic (Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica).
Folha - Como nasceu sua parceria com o diretor de fotografia Néstor Almendros?
Alea - A primeira experiência que tive em cinema foi com uma câmera de 8mm, uma tentativa de brincar com a câmera. Foi também a primeira experiência de Néstor. Nos juntamos para fazer um filme baseado num pequeno conto de Kafka, "Uma Confusão Cotidiana" (1950). Nele dois homens que têm um encontro marcado num certo lugar nunca se encontram. Quando um chega, o outro ainda não está. O primeiro vai procurá-lo, o segundo chega ao lugar. Os atores foram três amigos nossos de teatro. A cópia desapareceu e não existe mais.
Folha - Vocês voltaram a trabalhar juntos?
Alea - Depois fiz um documentário chamado "Assembléia Geral" (1960), sobre a Primeira Declaração de Havana, do qual participaram vários fotógrafos, inclusive Néstor.
Folha - Como o senhor recebeu a ruptura dele com o regime castrista?
Alea - São coisas para as quais não encontro explicações profundas. Ele saiu muito cedo, no princípio de tudo (Almendros trocou Havana por Paris em 1962). Acho que teve a ver com sua posição dentro do Icaic. Ele não viu perspectivas para seu trabalho, não sei. A mim, o que mais surpreende é sua militância contra-revolucionária posterior, muito posterior. Ele saiu e tudo estava bem. Aparentemente não havia ressentimentos.
Anos depois, Néstor aparece com os dois filmes, "Conduta Imprópria" (1983) e "Ninguém Escutava" (1987), quando ele já nada tinha a ver com Cuba. Me surpreendem ainda mais as entrevistas de Néstor, que tenho recortadas, quando diz que nunca teve nada a ver com a política. Isso é absolutamente falso. Ele esteve na Juventude Socialista, que era a juventude comunista de então. Eu não (risos). Foi ele que me iniciou no marxismo, que me deu os primeiros livros de Marx para ler. Foi ele que me chamou para atirar ovos nuns poetas espanhóis que vieram representar Franco. Depois disse que não era militante, mas fez filmes de militância contra-revolucionária. Para mim, isso é de uma incongruência que nunca pude esclarecer com ele.
Folha - O senhor viu os filmes dirigidos por ele?
Alea - Vi o primeiro, "Conduta Imprópria". Me parece um documentário muito manipulador, dos piores que se pode fazer em qualquer parte, em Cuba inclusive, pois os fazem aqui com sinal contrário. A informação é certa, mas manipulada. Da maneira como é apresentada, é generalizada. Me parece uma operação desonesta em primeiro lugar.
Folha - Como companheiro de geração, qual a importância que o senhor vê na obra de Santiago Álvarez para o cinema cubano?
Alea - A importância de Santiago é fundamental. Ele chega ao cinema tardiamente, já uma pessoa madura, e tem uma originalidade que poucos têm. Ele agarra o cinema e começa a fazer o que lhe vem a cabeça, com uma intuição muito grande. Cria um estilo, com uma personalidade muito forte e única.
Folha - O senhor conviveu com Glauber Rocha durante o período nos anos 70 em que ele passou em Havana?
Alea - Sim, estive muito perto de Glauber. Ele me pareceu alguém muito apaixonado. Ele trabalhou muito vinculado ao Icaic. Teve ainda uma relação muito rica, inclusive epistolar, com Alfredo Guevara, o presidente do Icaic.

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