São Paulo, domingo, 28 de abril de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Os desafios da modernização

ANTONIO KANDIR
ESPECIAL PARA A FOLHA

A sociedade brasileira permaneceu anos atordoada pela trepidação incessante da superinflação. Com o Plano Real, podemos hoje dimensionar de modo mais realista e sereno os problemas com que nos defrontamos, bem como os instrumentos que temos para lidar com eles e, afinal, resolvê-los. Essa é uma das grandes virtudes da estabilidade econômica: ela não tem o poder, por si só, de pôr fim aos problemas cruciais de uma sociedade, mas a obriga a enfrentá-los sem subterfúgios, ao mesmo tempo que lhe permite enfrentá-los com chances renovadas de sucesso.
Não são poucos nem pequenos os problemas do Brasil. Somos uma sociedade em que, ao longo da história, problemas foram se acumulando, sem ser inteiramente superados. De tal modo que hoje temos de lidar, simultaneamente, com problemas herdados de uma sociedade que foi colonial e escravocrata e com problemas de uma sociedade industrial que luta por inserir-se de modo competitivo na nova economia mundial.
A solução dos problemas brasileiros exige portanto realizar tanto a agenda imposta pela permanência de problemas seculares do subdesenvolvimento, como também a agenda imposta pela necessária inserção do país na economia capitalista deste final de século. É ilusão tentar cumprir a primeira sem realizar a segunda. Já cumprir a segunda sem realizar a primeira não pode senão produzir uma modernidade postiça, economicamente insustentável e socialmente regressiva.
A chave para cumprir ambas as agendas está na reforma do Estado, um processo apenas iniciado. Dizer reforma do Estado talvez não dê noção exata da magnitude do que está em jogo e do que se trata de realizar. Talvez mais adequado fosse falar em transformação do Estado, tais as mudanças necessárias em suas dimensões materiais, normativas e funcionais e, sobretudo, em suas relações com as corporações, grupos privados e clientelas eleitorais.
O fato é que o regime autoritário e os anos de crise sob regime democrático nos legaram um Estado envelhecido, brutalmente debilitado em sua estrutura material, em seus recursos humanos e em sua legitimidade. Um Estado cuja capacidade de resposta está muito aquém das exigências colocadas por uma sociedade e uma economia em veloz e complexa transformação. Nos anos de crise, a sociedade criou novas formas de representação, organizou-se, articulou novas demandas, estabeleceu novas formas de comunicar-se, identificar problemas e resolvê-los.
A economia também iniciou seu processo estrutural de transformação. Multiplicaram-se os pólos de desenvolvimento, surgiram novos segmentos empresariais, um novo sindicalismo de trabalhadores. Com a abertura, essas transformações foram potenciadas e toda uma nova cultura de produtores e consumidores começou a tomar corpo, sob a pressão da concorrência e a ampliação do universo de comparação e escolha. Nossa maior dificuldade é que o Estado não acompanhou essas transformações.
A construção do poder público necessário para cumprir simultaneamente as agendas da modernidade e do subdesenvolvimento é a grande tarefa das forças políticas que, vindo da tradição reformista e democrática, souberam entender as exigências impostas pelas mudanças na sociedade brasileira e na economia mundial, nas últimas décadas.
As transformações da economia capitalista neste final de século são essencialmente contraditórias, pois, a um só tempo, abrem oportunidades inéditas ao desenvolvimento e ao bem-estar e colocam ameaças que apontam justamente no sentido da regressão social, econômica e política. Do ponto de vista da ação política, em especial num país como o nosso, que não está no centro do sistema capitalista, é fundamental compreender o caráter intrinsecamente contraditório desses fenômenos.
O que nos importa, enquanto sociedade nacional, é ter a percepção tão exata quanto possível de nossa inserção na cena mundial, dos efeitos dessas tendências contraditórias sobre a nossa realidade. Importa saber identificar as oportunidades e ameaças que nos defrontam, de modo a maximizar as primeiras e minimizar as segundas e assim abrir o caminho de uma inserção positiva na nova dinâmica da economia mundial.
Essa será tão mais positiva quão mais estreitamente corresponder à incorporação de milhões de brasileiros ao mercado e à sociedade brasileira, não apenas pelos efeitos da ampliação do mercado consumidor sobre os investimentos, mas sobretudo pela elevação da capacidade de produzirmos bens e serviços com qualidade crescente, variável-chave para geração de investimentos numa economia globalizada.
Inserir-se de modo competitivo na economia mundial e incorporar a grande massa da população na sociedade e no mercado é o duplo desafio do Brasil neste final de século. Sua superação pressupõe a consolidação da estabilidade econômica. Não só por seus efeitos redistributivos imediatos, mas também porque a estabilidade econômica permite ao país -ao Estado, aos empresários, aos trabalhadores, à sociedade, enfim- recuperar a capacidade de agir com vistas a objetivos de longo prazo.
Mas, se a estabilização é condição necessária, ela não é condição suficiente para superar esse duplo desafio. Ela precisa desdobrar-se em crescimento sustentável e para tanto as reformas do Estado são indispensáveis, como condição da expansão do investimento.
É um erro supor que quanto menos Estado, mais investimento. Por um conjunto de razões: 1) a recuperação da capacidade de planejamento e regulação do Estado é necessária para viabilizar e estimular o investimento privado; 2) a existência de um Estado eficiente, que faça bem aquilo que lhe incumbe fazer, é garantia indispensável de previsibilidade e segurança quanto às condições de concorrência, entendidas em sentido amplo, o que desde logo chama atenção para a necessidade de uma Justiça que funcione; 3) a atuação agressiva do Estado no campo da política externa é fundamental para ampliar oportunidades e minimizar ameaças num mundo em que os fluxos de comércio, investimento e tecnologia obedecem cada vez mais a acordos preferenciais; 4) o provimento de caráter público de bens coletivos básicos, como saúde, educação, saneamento, habitação etc, de modo amplo e com qualidade elevada, é variável-chave para a geração de investimentos.
Analisemos com mais vagar este último ponto, para mostrar que a reestruturação dos serviços básicos providos pelo Estado são não apenas um imperativo de natureza moral, num país marcado por brutais desigualdades sociais, mas também um dos eixos centrais de uma política ampla de desenvolvimento.
Num mundo de economia globalizada, os investimentos dão preferência aos espaços econômicos que ofereçam vantagens sistêmicas. Dentre elas, a capacidade de produzir bens e serviços com aperfeiçoamento permanente de qualidade. Ora, um país que não ofereça educação formal competente, atendimento de saúde adequado, condições de moradia, saneamento e transporte dignas, enfim, um país em que a qualidade de vida seja ruim, não será um país apto a competir pela geração e atração de investimentos. Por uma razão óbvia: onde a qualidade de vida é ruim, dificilmente pode haver produção com qualidade crescente. Dai que, num mundo globalizado, um país sem uma política social consistente e transformadora é um país fadado, no longo prazo, à subordinação e ao atraso.
É, portanto, absolutamente crucial estabelecer, por meio da reforma do Estado, especificamente da reestruturação dos serviços públicos básicos, as condições de um círculo virtuoso em que boa qualidade de vida e qualidade crescente na produção de bens e serviços sejam, a um só tempo, pressuposto e resultado que se reforçam mutuamente. Para que esse círculo virtuoso se estabeleça, é fundamental melhorar radicalmente a qualidade das políticas sociais, para que produzam efeitos realmente redistributivos.
Em nenhum outro caso a relação entre reconstrução do Estado, competitividade e melhoria das condições de vida fica tão clara quanto no caso da educação. Assim como em nenhum outro caso é tão estreita a conexão entre a agenda dos problemas herdados do subdesenvolvimento e a agenda dos desafios lançados pela modernidade.
Com a revolução tecnológica, a educação tornou-se fator chave da competitividade. Um país cujos trabalhadores não tenham recebido competente instrução escolar não será capaz de produzir inovações, tampouco de assimilar e utilizar adequadamente inovações produzidas fora do espaço nacional. Dessa maneira, será um país fadado a gerar e receber investimentos privados débeis e rarefeitos e a ocupar uma posição subordinada e marginal nos intercâmbios comerciais, tecnológicos e financeiros, o que resultará inevitavelmente em piora da qualidade de vida de seu povo.
Universalizar educação de boa qualidade é ainda desafio a ser vencido no Brasil. Não é segredo para ninguém que para vencê-lo é necessário dotar o Estado de condições para prover educação competente para dezenas de milhões de brasileiros que hoje estão desprovidos desse instrumento essencial para participar da sociedade moderna. Para tanto são necessários investimentos por muitos anos. Mas os investimentos não bastam. É fundamental uma profunda reorganização institucional, de papéis e funções, das agências públicas envolvidas no processo educacional, desde o ministério, até a escola, passando pelas secretarias estaduais e outros órgãos intermediários.
Essa reorganização institucional tem dois requisitos indispensáveis e interligados: a valorização salarial e da competência técnica dos profissionais da área e a eliminação da malha de interesses políticos que se implantou na educação pública, com enorme grau de desperdício de recursos públicos.
Iniciativas importantes têm ocorrido nessa direção. Lembro o Fundo de Valorização do Magistério, projeto encaminhado ao Congresso pelo governo federal, e a sistemática de alocação direta de recursos nas unidades escolares, implantada por governos do PSDB em vários níveis. Iniciativas como essas são o passo inicial de uma melhoria continuada e substancial do nível de instrução da população brasileira.
Condição para tanto, a modernização do Estado tem aí um enorme potencial transformador. No plano econômico, melhora as condições de competição da economia brasileira. No plano social, cria as condições para a elevação continuada dos padrões de vida da grande massa da população brasileira. No plano político, cria as condições para a melhoria da qualidade da representação, visto que não há remédio melhor contra o uso clientelista e predatório do Estado do que uma cidadania ativa e instruída.
Reconstruir o Estado impõe tarefas como fortalecer-lhe a competência técnica, equipá-lo materialmente e estabelecer mecanismos que permitam controlar suas atividades e resguardá-lo do clientelismo político -tarefas que foram necessárias na construção do Estado brasileiro nos moldes do antigo modelo de desenvolvimento. Impõe também reduzir radicalmente sua presença na esfera produtiva, o que marca um ponto de inflexão com relação ao passado. Mas impõe também tarefas inéditas, como: 1) dar vida a instituições que não sejam estatais, mas públicas, incumbidas de regular o funcionamento de mercados e a prestação de serviços antes monopolizados pelo Estado; 2) transformar instituições estatais em instituições públicas, na área de prestação de serviços não exclusivos do Estado (hospitais, escolas etc.); 3) estabelecer vínculos com instituições da sociedade civil para fins de implementação e controle de políticas públicas, notadamente na área social etc.
Nessa ótica, fica claro que a reforma do Estado está longe de resumir-se à privatização. Na verdade, a reforma do Estado necessária comporta também um elemento importante de "desprivatização", já que visa eliminar relações simbióticas entre o Estado e grupos privados, e um elemento de dimensão histórica inédita no Brasil: a ampliação do espaço público.
A construção dessa nova forma de regulação da vida econômica e social é da maior importância para o sucesso da retirada do Estado da esfera da produção.
Para que ela resulte não apenas em ganhos de natureza fiscal, mas também em ganhos permanentes de eficiência e qualidade no provimento de infra-estrutura e serviços de utilidade pública, com efeitos dinâmicos sobre o nível de investimentos privados e a competitividade da economia, é fundamental que o setor público construa uma nova capacidade de intervenção e regulação, consubstanciada em órgãos regulatórios que sejam independentes de ministérios e secretarias, ocupados por profissionais competentes e comandados por diretorias com mandatos fixos.
A importância de institucionalizar formas públicas de regulação é demonstrada pelas experiências bem-sucedidas de privatização em outros países. A constituição de novas instituições regulatórias são condição necessária para assegurar à população preço e qualidade adequados no provimento de bens de utilidade pública, bem como assegurar a todos os investidores privados efetivos e potenciais que não haverá lugar para práticas desleais de mercado, sem o que o investimento tende a retrair-se.
Em contraste, onde houve privatizações selvagens, apressadas e malfeitas, sem regras e instituições independentes capazes de conciliar a necessidade de vultosos investimentos privados com o caráter público dos serviços, os resultados a médio e longo prazos revelaram-se negativos, em termos de investimentos realizados e atendimento das necessidades da população.
Junto com a reforma do Estado, é necessário também fazer a reforma política. O Estado democrático é um Estado representativo e por isso a qualidade de suas políticas depende da qualidade das relações entre o eleitorado e os partidos e entre o Congresso, lugar por excelência da representação dos partidos, e o Executivo. Mal comparando, fazer a reforma do Estado sem fazer a reforma politica equivale a consertar o hardware sem mexer no software do processo decisório. Em outros termos, a construção dos instrumentos necessários para termos um Estado realmente eficiente e público não produzirá todos os seus efeitos se os mecanismos de representação continuarem a favorecer barganhas políticas em bases patrimoniais e fisiológicas.
As características da representação política no Brasil têm raízes históricas e culturais profundas. Sabemos que não se pode superá-las apenas por meio de modificações na legislação. A superação dessas características implica mudanças na cultura política que só processos sociais mais amplos poderão produzir -melhoria das condições de vida, com atendimento de necessidades básicas; melhoria dos níveis de instrução; melhoria na qualidade dos meios de comunicação de massa etc.
Isso não significa que devamos apenas induzir esses processos e não fazer mudança alguma nas regras que organizam o processo eleitoral e os partidos políticos, sobretudo em seu funcionamento parlamentar, à espera de que processos sociais mais amplos produzam os seus efeitos. Seria uma tolice. Em primeiro lugar, porque as iniciativas não conflitam. Em segundo lugar, porque as mudanças na legislação têm importância em si mesmas. Em terceiro lugar, porque mudanças imediatas nas legislações partidária e eleitoral, à medida que aperfeiçoem o processo de escolha eleitoral e o processo decisório no eixo Executivo-Congresso, produzirão efeitos positivos na qualidade das políticas públicas, dentre elas as políticas públicas fundamentais para criar as condições objetivas de mudanças profundas em nossa cultura política.
Sabemos que o caminho das reformas é longo e repleto de conflitos pelo caminho. Reformar o Estado é enfrentar interesses que ao longo de anos se encastelaram em seu interior, como se o Estado lhes pertencesse e não à sociedade. Esse processo não se esgota no tempo de mandato do presidente Fernando Henrique. Na perspectiva em que estamos nos colocando, o processo de transformação do Estado brasileiro é um processo de muitos anos.
Nesse processo, as alianças são e serão necessárias. O importante é que o PSDB, buscando sempre alargar o campo de ação convergente, saiba marcar os contrastes que o diferenciam de outras forças políticas, saiba definir com clareza sua identidade na dinâmica da política democrática, que não se dá apenas nas instituições do Estado, mas também e fundamentalmente na sociedade, em especial no âmbito da opinião pública.
É participando com clareza desse jogo de convergências e divergências que o partido poderá afirmar cada vez mais sua identidade. Não uma identidade rígida, à moda dos partidos autoritários e autocentrados, mas uma identidade que, apoiada numa matriz básica, reatualize-se na reflexão permanente sobre a validade de seus pontos programáticos e da conversão destes em políticas de governo.

Este texto é uma síntese modificada de documento preparado para a Convenção Nacional do PSDB.

Texto Anterior: Coluna Joyce Pascowitch
Próximo Texto: Um ordenador insano
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.