São Paulo, domingo, 28 de abril de 1996
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Como não casar com parentes

HÉRCULES MENEZES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em sua clássica obra "Totem e Tabu" (1913), Sigmund Freud assinala certas particularidades do chamado sistema totêmico, constatado em diversas tribos primitivas da Austrália e outras regiões do planeta. "Em quase todos os lugares onde o totem está em vigor existe a lei segundo a qual os membros do mesmo totem não devem ter relações sexuais e, portanto, não devem casar entre si. Esta é a lei inseparável do totem, chamada exogamia", escreve Freud.
Antes da adoção dos nomes familiares, o homem utilizou outras estratégias para distinguir parentes próximos daqueles mais afastados, ou, melhor dizendo, distinguir com quem poderia deixar descendentes. Numa dessas estratégias, um pequeno agrupamento familiar denominado clã elegia um animal como totem. Este "pai ancestral" do clã, por assim dizer, era transmitido de geração a geração, formando dessa forma grupos familiares diferenciados entre si por meio da adoção de um totem.
Numa linguagem mais biológica, estes clãs poderiam ser descritos como populações humanas apresentando alto grau de similaridade gênica, no qual a endogamia -quer dizer, o cruzamento entre esses parentes- poderia levar à emergência de uma série de anomalias genéticas e à consequente degeneração dos clãs. O estabelecimento de uma norma cultural, na qual os indivíduos de um clã só pudessem casar-se com indivíduos de outro clã (exogamia), foi um fator crucial para que estas populações primitivas não se extinguissem pela endogamia.
Para Freud, a ocorrência de uma proibição do incesto, ou tabu do incesto, em populações primitivas já era um fato marcante e sustentável para o desenvolvimento de sua teoria psicanalítica. Devemos salientar ainda que as informações acerca da evolução do homem eram então insignificantes quando comparadas com as que dispomos hoje em dia.
Mas, para a biologia, a questão decorrente é: como os homens evitavam a endogamia antes do advento do totem?
Primeiramente, antes de procurarmos tal resposta, devemos nos lembrar de que, ao mesmo tempo em que somos membros da espécie humana, nós fazemos parte da natureza. Mesmo nossas atitudes particulares, que muitas vezes acreditamos serem excepcionais, não diferem, no plano quantitativo, daquelas de nossos parentes não humanos mais próximos.
Neste século, é inquestionável a tendência de procurarmos respostas à nossa existência através de uma interiorização, seja pela psicanálise, seja pelo reducionismo na biologia molecular. A ferramenta mais adequada para esta última área de conhecimento tem sido a engenharia genética. Muitas vezes, através destas técnicas, é possível traçarmos paralelos entre comportamentos culturais e patrimônio genético.
Genes e parceiros
Uma das regiões do genoma dos vertebrados que mais tem recebido atenção é o CPH (Complexo Principal de Histocompatibilidade, ou MHC, em inglês). No homem, ele compreende uma região contendo mais de 100 genes, localizada no braço curto do cromossomo seis. Nesse campo, a maior parcela dos estudos foi focalizada no papel preponderante que os produtos destes genes desempenham nas reações de rejeição a enxertos.
Apesar da importância dessas pesquisas, os imunobiologistas têm outra perspectiva de trabalho. Enxertos não ocorrem na natureza e, portanto, esses genes deveriam desempenhar alguma outra função. Além de seu papel no reconhecimento de materiais estranhos ao organismo, já há cerca de duas décadas vêm sendo acumulados indícios de que, pelo menos em camundongos, a escolha do parceiro sexual estava influenciada por este complexo gênico.
Alguns genes do CPH são conhecidos por apresentarem um alto grau de polimorfismo -isto é, formas alternativas (alelos). Como são genes responsáveis pela resistência imunológica, ocorre que, em uma dada população, os indivíduos sejam diferentes, pelo menos quanto a estes genes (exceção dos gêmeos idênticos) e, consequentemente, consigam apresentar graus diferentes de resistência imunológica a uma dada infecção microbiana.
Pesquisa
Num artigo publicado no renomado boletim científico "Proceedings of the Royal Society of London", Claus Wedekind e sua equipe, formada por pesquisadores do Instituto de Imunologia e Alergia, e da Universidade de Berna, na Suíça, apresentaram uma pesquisa na qual se mostrou que a escolha do parceiro sexual na espécie humana ocorre com interferência do odor e que o CPH está envolvido na produção deste odor.
Estudantes de ambos os sexos, que não se conheciam, tiveram alguns de seus genes do CPH analisados por engenharia genética e classificados quanto ao grau de parentesco entre eles. Os alunos vestiram uma camiseta por duas noites consecutivas e, no dia seguinte, cada aluna cheirava seis camisetas e atribuía-lhes notas (de 0 a 10), quanto à sensação de prazer que o odor lhes causava. A análise dos resultados mostrou que as notas correspondentes às maiores sensações de prazer eram dadas aos odores dos alunos cujo CPH eram mais diferentes dos seus, ou melhor, dos alunos com grau de parentesco mais distante. Havia um "tabu genético" tendendo a evitar um cruzamento entre parentes mais próximos.
Evidentemente, a reprodução sexual acarreta substancial benefício aos organismos que a utilizam e, portanto, devem existir mecanismos que facilitem a ocorrência de cruzamentos interessantes para os membros de uma população.
É claro que não existe um determinismo genético tão rígido para a escolha de nossos parceiros sexuais. Um comportamento como esse está sujeito a diversos outros fatores que não só o odor. Ainda mais se levarmos em conta que, durante o processo de humanização, nossa percepção olfativa não acompanhou a visual e auditiva.
Entretanto, além de sua repercussão no âmbito biológico, este artigo vem reforçar a idéia de Freud de que o tabu do incesto foi preservado durante o processo de humanização, e mantido em nosso comportamento cotidiano. Em outras palavras, que a hipótese psicanalítica do tabu do incesto pode ser corroborada pela biologia.

LEIA MAIS sobre odor e preferência sexual à pág. 5-16

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