São Paulo, segunda-feira, 29 de abril de 1996
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Sangue

DARCY RIBEIRO

Até quando se continuará sangrando o povo brasileiro para manter, intocado, o latifúndio improdutivo? Essa barbaridade se funda num princípio inexplícito da Constituição brasileira, que é a regalia abusiva de deixar a terra improdutiva por força do direito de propriedade.
Com efeito, cerca de 20 mil grandes proprietários de terra expulsaram dezenas de milhões de brasileiros do campo e os continuam expulsando, com base nessa legalidade desumana.
A mais defendida no Congresso por parlamentares retrógrados, mas importantes porque numerosos.
O que querem é preservar seu direito de não plantar e nem deixar ninguém plantar na imensidão de terras que monopolizam. Impedem, desse modo, que se assentem num pé de chão milhões de famílias que só assim poderiam trabalhar, alimentar seus filhos e vender excedentes.
É tolice pensar que a reforma agrária se deva fazer para aumentar a produtividade da terra. Isso é tarefa dos fazendeiros. A função dela é ocupar as massas de trabalhadores rurais ou rurificáveis da única forma em que eles podem ser inseridos na economia como produtores e consumidores.
A alternativa é deixá-los morrer de fome ou forçá-los a se revoltarem na condição assumida de sem-terra para tomar o que de direito é deles. Como está sucedendo.
É totalmente impossível qualquer reforma agrária séria por meio da desapropriação de terras nas condições em que isso se faz no Brasil. Simplesmente não temos dinheiro para custear a negociata em que se converteu a reforma agrária.
O que cumpre fazer, imperativamente, é reverter ao domínio público as terras concedidas em qualquer tempo para usar e que não são usadas. É revogar aquele direito implícito de não usar e não deixar usar a terra.
Essa é a única forma que existe de dar trabalho e perspectiva de prosperidade a milhões de famílias brasileiras submetidas ao desemprego, à violência e à fome.
Para tanto, se tem simplesmente que fazer a única reforma constitucional importante em nosso país. A de introduzir na Constituição o princípio de que a ninguém é lícito manter a terra improdutiva, por força do direito de propriedade.
E o artigo dele decorrente, determinando que toda terra inculta reverta ao poder público para constituir um Fundo de Colonização. É inútil qualquer disfarce dessa formulação que não permita tomar o que de direito é público, que são as terras não-usadas.
Igualmente inútil é qualquer reforma que não possibilite ao governo criar um Fundo de Colonização suficientemente grande, para atender a milhões de lavradores.
Somente uma reforma com essas características permitiria alcançar dois objetivos essenciais: 1) dar segurança aos fazendeiros produtivos de que suas terras não serão tocadas; 2) garantir aos desempregados rurais e urbanos do Brasil a perspectiva de prosperidade que lhes daria um vasto Fundo de Colonização.
É hora já de promulgar essa reforma, porque a convulsão no campo já começou. O presidente FHC teve a coragem de convocar o Exército para garantir a paz no campo, desatrelando os militares do papel tradicional de serviçais do latifúndio. Foi uma medida ajuizada.
Ninguém é capaz de conter a força secularmente acumulada da revolta camponesa. Cabe, agora, ao Congresso fazer a sua parte: legislar a verdadeira reforma agrária.

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