São Paulo, terça-feira, 30 de abril de 1996
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O presidente deita no divã do psicanalista

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

-Doutor, por que me sinto tão sozinho? -perguntou FHC ao psicanalista.
-A pior forma de solidão é a Presidência da República. Cento e tantos milhões olham-no com esperança ou ódio. O senhor tenta ser o psicanalista do país, mas o país também o está psicanalisando. O Brasil virou um Centro de Terapia para Presidentes -respondeu o analista, no fundo do salão do Alvorada.
-Esse massacre no Pará foi terrível! -gemeu FHC.
-Para quem? Para eles ou para o senhor? Foi seu primeiro golpe duro. O massacre doeu-lhe; foi uma ferida narcísea em flor. Essas explosões de miséria chocam seu desejo racional de harmonia, presidente. O senhor quer trazer o Iluminismo para um país feudal.
-Mas eu gritei: "Isso não é coisa de pais decente!" -reagiu FHC.
-Sim... Mas vamos analisar... O país "não" é decente... O senhor reagiu como a um ataque pessoal. O senhor é ruim de reações agressivas. Geralmente, seu ódio vem custoso, reativo, vitimado.
-Maria da Conceição disse que, na universidade, eu sempre quis conciliar contrários... Isso é ruim, doutor?
-Não... Isso é seu melhor lado desde sua tese sobre "Capitalismo e Escravidão", essa vontade de acabar com o maniqueísmo vagabundo da esquerda óbvia, que adora um conflito insolúvel para viver no marasmo da impossibilidade, no pântano do não. (O analista gostou da frase.) Por não ser assim, o senhor é o presidente mais apto para resolver esse drama entre a Bélgica e a Índia.
-Será que consigo, doutor?
-Se bobear, dança! Quer dizer... Presidente... Essa é sua maior coragem e seu maior risco. O que a esquerda velha condena é seu mais fino bordado: a aliança com o PFL e as transigências paródicas com o fisiologismo, como uma espécie de "meta toma-lá-dá-cá" que se autodenuncia. Só que essa estratégia de "cordialidade crítica" também se esgota depois de certo tempo, e a sedução começa a não bastar. Presidente, entre a tolerância e a vaselina há um limite que é quase nada...
-Mas eu não sou vaselina...
-Não... Mas o senhor.. Presidente... Tem uma grande dificuldade em desagradar. É típico dos narcíseos. O senhor sonha com uma unanimidade impossível. Esse desejo "ecumênico" apenas esconde seu medo pelo próprio ódio. Já disse: o senhor é ruim de conflito. Aquele lance do "nhenhenhém" foi lamentável. Parecia que você... O senhor estava chorando... Lamentando que seu ideal francês de harmonia estava sendo estragado pelos meninos maus do PT.
-Eu tento encontrar caminhos entre a globalização e o Brasil... E esses babacas...
-Muito bem, presidente...
-Esses putos... Acham que eu me vendi ao FMI...
-Claro... O senhor trabalha com a "positividade"... Que eu acho superlegal, porque os intelectuais da herança hegeliana têm a fixação na "negatividade"... Eles acham que só o "contra" é legal... São uns paranóicos... Mas teu... Desculpe... O senhor...
-Pode me chamar de "tu"...
-Obrigado!... Teu horror aos velhos vícios marxistóides... Teu amor à chamada "utopia possível" não pode te levar a perder o sentido de "tarefa", que é a melhor herança dos comunas... Esse amor ao complexo não pode te paralisar. Você inventou um bonapartismo disfarçado, um messianismo cordial que quer resolver tudo sozinho... O messianismo light do sorriso... Aí, os ministros perdem o "drive", o ímpeto. Eles também são vaidosos, querem aparecer também... Você não deixa... Só dá você...
-Mas eu acho que não adianta um voluntarismo emergencial que quer resolver tudo. Tenho de desbloquear caminhos do Estado, para a água correr...
-Tudo bem... Mas você não pode confundir isso com um "laissez-fairismo" malsão... Com um "deixa pra lá" para as metas. Você se acha a "resposta" para a crise entre a globalização e o Brasil. Você não é a síntese entre Marx e Wall Street... Se você for mais humilde, poderá agredir antes. Você só agride por reação...
-Mas, doutor...
-Você acha o ódio feio... Só que seu amor à "razão" esconde um medo do emocional... Veja o teu porta-voz, é um homem de bem... Mas é o porta-voz da não-emoção, da má notícia, fala de olhos baixos, tristes. Ele é tua emoção, teu outro. Você devia ter como "porta-voz" aquele cara das Lojas Americanas, aquele do "Passa aqui!...". Você acha que entende os outros, fez sociologia; mas a sociologia é apenas a análise dos outros. E a psicanálise é a sociologia do "eu"... Ah! (Gostou da frase, o freudiano)... Você precisa jogar sua loucura para fora. Até o Itamar dava mais medo que você... A gente vivia em suspense, pois ele podia destruir o país a qualquer momento... Aliás, como foi fácil ser ministro, cuidando da maluquice do Itamar!... E, hoje, quem é o teu "Fernando Henrique"?... Teu sorriso seduz, mas começa a virar um desafio para a oposição apagá-lo. Um esporte: irritar o FHC. Se você começa a perdoar muito, perdem o respeito. Você viu lá em Goiás e Porto Seguro; só faltaram te caçar a pauladas, feito uma ratazana grávida!!! Desculpe a imagem... Ah, ah... Você está sozinho por narcisismo. Você não viu o José Dirceu abraçado ao Sarney, ao Itamar e aos quercistas, te atacando e condenando tuas alianças?... Que vergonha... A culpa de tudo acaba sendo sempre tua... Subiu o frango, culpa tua; mataram os sem-terra, culpa tua. Cuidado! Todo narcisista anseia por um martírio! (FHC tremeu. Começava a ver uma luz de entendimento.) Você não precisa mais ser amado; tem de ser temido. Temido... Brasileiro gosta de macho. "Ah, o Collor, digam o que disserem, ele é macho", diziam nos botequins... Latino gosta de autoridade. (Algo mudava em FHC.)
Ninguém sabe das tuas intenções! Você não pode deixar que te chamem de reacionário vendido, como faz essa oposição stalinista! Seja humilde e faça uma grande campanha de explicação ao povo. O Brasil precisa de um plebiscito branco, senão não haverá reforma, tudo volta atrás. E os sabotadores dirão: "Viu? Fracassou!" E vão continuar a cafetinar a miséria.
Não seja egoísta; reparte teu poder com a sociedade. Aliás, onde estão as campanhas publicitárias? Tua única publicidade até agora foi o Bráulio das camisinhas e aquele despertador do "Acorda, Brasil!". Que horror! Pra mim, esse é o grande mistério do teu governo: como a melhor campanha eleitoral do mundo virou essa "Radiobrás" de merda? Desculpe, presidente... (FHC exalava cada depressão, mas a luz vinha.)
Você vive falando em reformas, reformas... Se você não se reformar internamente, não vai ter reforma nenhuma... Agora é o momento da virada. Bota para fora teu ódio, bota, Fernando... Do contrário, você vai ser o Gorbatchov latino e vai dar o poder para algum bêbado louco por aí!
Foi então que o presidente se ergueu do divã. E gritou:
-Seus idiotas... Seus cascas de ferida, seus sujos, mequetrefes, nefelibatas!...
-Isso, Fernando...
-Eu... Eu sou o presidente desta joça... Meu povo! As reformas são o seguinte... Eu sou o que manda, eu sou o pau na mesa, o chefe desta pátria que nos pariu!
-Dá-lhe, garoto!... Isto é... Presidente!

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