São Paulo, quarta-feira, 1 de maio de 1996
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Não decifram, mas devoram

JANIO DE FREITAS

Se os aventureiros europeus que valorizaram suas façanhas com histórias sobre antropófagos visitassem, hoje, a Terra Brasilis, não precisariam mais exaurir os pobres dotes ficcionais para descrever o espetáculo canibalesco. Teriam em mãos os elementos descritivos, com pormenores de realismo autenticados, logo às primeiras conversas sobre as práticas mais comuns entre as figuras centrais do governo.
O atual governo não é, claro, original nestes hábitos. O que lhe confere posição especial, na comparação com os anteriores, são duas peculiaridades suas: a atividade de fazer um companheiro ser devorado tem primazia sobre qualquer outra; e não se conhecem exceções, no grupo principal da administração e da política do governo, àquela primazia.
Os grupos dos ministros José Serra e Pedro Malan foram muito apontados, nos meios de comunicação, como ativistas das notícias embaraçosas que ora atingiam um, ora outro. Era assim mesmo, mas os jornalistas têm esquecido de dizer que eles próprios são os agentes das tentativas mútuas de destruição. E poucos dos que alimentam o fogo cruzado estão agindo ingenuamente, sem engajamento com um dos lados.
Isso mesmo acontece no Banco Central, cujos gabinetes de diretores, apesar dos disfarces decorativos, são trincheiras. Quem, ali, não conta com uma boa tropa de imprensa, fica entre os tiros trocados, de um lado, pelo grupo de Gustavo Franco e seu exército de senhoras-jornalistas, e, de outro, pelos que tentam se defender dessa artilharia, por sinal, muito pesada. Há pouco, Gustavo Loyola quase foi consumido pela sanha de notícias manipuladas a partir do próprio Banco Central, de gabinetes ministeriais e de gabinetes do Planalto.
Gabinetes do Planalto? Salve-se quem puder. Por ali a rasteira, a faca pelas costas, coisas assim não eram excepcionais. Sem que jamais fossem esquecidos, porém, o abraço e o sorriso que antecediam a rasteira ou acompanhavam a faca. No atual governo, excepcional é que em algum momento não esteja alguém sendo envenenado ali.
No Gabinete Civil, de Clóvis Carvalho, e nas cercanias do secretário Eduardo Jorge, o ar está em seu nível mais puro quando se iguala ao de Tchernobil na hora pior. As usinas de farpas, giletes e punhais que funcionam naqueles gabinetes, mas nem sempre como aliadas, alimentam grande parte da fofoquice e da intrigalhada que passam por notícias políticas. E que fazem o jornalismo de política ser, no Brasil, tão tedioso e inútil para a cidadania.
O Planalto tem visto muito, mas tamanha atividade neste tipo de ocupação, com toda a certeza jamais viu. E nem se falou, até porque desnecessário, da contribuição incomparável de Sérgio Motta a esta característica do governo atual.
Nada disso é novo, chegou ao poder com os novos do poder. E por que ocorre falar disso agora? Foi uma coisa à toa, só mais uma demonstração da voracidade canibalesca. Mas tão incontível lá, que fez falar disso cá. Os palacianos não conseguiram esperar nada. Luiz Carlos Santos apenas acabava de tomar posse como ministro da Coordenação Política, e já Clóvis Carvalho entregava aos jornalistas uma dose de ácido corrosivo: "A coordenação política é um papel que sempre foi e continuará sendo do presidente Fernando Henrique".
Outros ministros só começaram a ser devorados no dia seguinte à posse.

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