São Paulo, quarta-feira, 8 de maio de 1996
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FHC e seus intelectuais

FREI BETTO

Prestes a ganhar a eleição, Fernando Henrique Cardoso recebeu efusivas adesões de intelectuais. Houve quem lançasse mão das páginas da Folha para enaltecer as virtudes cívicas e democráticas de um presidente que, por seu passado político e por sua obra acadêmica, parecia potencializar as condições ideais para livrar o Brasil do entulho autoritário, erradicar a miséria, reduzir a desigualdade social e consolidar a democracia.
Ao enfatizar, em seu programa de campanha, a questão social, FHC fortaleceu a ilusão de que poria também o outro pé nessa imensa senzala que caracteriza a vida de pelo menos 100 milhões de brasileiros pobres.
Quinze meses de governo FHC demonstram, de modo indubitável, duas coisas: 1) os intelectuais laudatórios, acólitos de uma social-democracia que jamais saiu do papel, foram, quase todos, premiados com cargos federais; 2) nenhuma de suas previsões se confirmou: FHC consegue ser um neoliberal sem nenhuma conotação social-democrata; sustenta-se numa composição erguida sobre o que há de mais retrógrado na política brasileira (os mesmos líderes que se destacavam como figuras proeminentes da ditadura militar); governa sem nenhum pudor, praticando cenas de fisiologismo explícito, como o comprova o "toma lá, dá cá" na busca de apoio às "reformas" encaminhadas à aprovação do Congresso Nacional.
Quando a moda era ler Marx, declarar-se de esquerda e professar uma via alternativa para o Brasil esses intelectuais multiplicavam-se em palavras, artigos e livros. Não corriam o risco de sair da redoma de cristal da vida acadêmica, não se tornavam "orgânicos" no sentido empregado por Gramsci, não participavam da vida sindical, dos movimentos de periferia ou das lutas no campo, exceto quando o movimento social emergia a ponto de merecer a atenção da mídia.
Então, lá estavam eles nos palanques, à frente das passeatas, participando dos debates na TV e, alguns, como FHC, oferecendo-se como candidatos à vida pública. Parafraseando Marx, eram ótimos para interpretar a história, desde que transformá-la ficasse aos cuidados dos movimentos populares e sindicais, das mulheres mobilizadas em prol da anistia e das multidões reivindicando "diretas já" e "fora Collor".
Em 15 meses, o governo FHC manteve o arrocho salarial (compare-se o aumento da gasolina com o do salário mínimo), socorreu com bilhões de reais bancos falidos, reprimiu com tropas militares petroleiros em greve, evitou uma política eficaz de reforma agrária, deu o sinal verde para os garimpeiros e madeireiros invadirem as terras indígenas, manteve-se subserviente à Casa Branca ao insistir no patrocínio americano do projeto Sivam e fazer aprovar, a toque de caixa, para brindar a recepção de um ministro dos EUA, a Lei de Patentes e, agora, liberou o preço da gasolina para agradar usineiros interessados em ressuscitar o Proálcool.
Enquanto isso, a questão social permanece relegada às funções da primeira-dama que, por sua vez, só reúne o conselho do Programa Comunidade Solidária na hora de cooptar artistas e intelectuais ou quando a sociedade civil cobra do governo ações eficazes.
Agora, com a renúncia de Betinho, Jorge Durão Saavedra e Renato Aragão e velhos propósitos embrulhados em papel de presente e apresentados por FHC, como novos, na segunda-feira, fica ainda mais difícil acreditar que este governo terá, no social, o mesmo empenho demonstrado quando se trata de salvar o sistema financeiro. Os ministérios da Fazenda e do Planejamento vão mesmo liberar os R$ 66,7 bilhões para a área social? Quem sobreviver, verá.
Algo mais grave, entretanto, paira nos céus de Brasília: corre risco a frágil democracia brasileira. Essa mesma elite autoritária beneficiada pela ditadura militar e que, em 1994, encontrou em FHC a tábua de salvação para impedir que o país caísse nas "perigosas mãos" de Lula agora trama a sua perpetuação no poder por meio do direito à reeleição. Em si, o direito é legítimo. Mas cheira a golpe quando se quer o presidente fazendo campanha para presidente. Eis a fujimorização à brasileira. Enfim, chega ao Brasil o verdadeiro "efeito tequila": há décadas, um único partido, o PRI, governa o México.
Embriagados pelo poder, muitos intelectuais brasileiros parecem ter perdido o senso crítico. Se já não crêem no horizonte socialista, no que acreditam? No receituário do FMI e do Consenso de Washington? E como conciliar as reformas e os reajustes propostos com os princípios elementares da ética social? Salva-se o governo e dane-se a nação?
"Vaidade das vaidades, tudo é vaidade", diz a sabedoria bíblica do Eclesiastes. Exceto o silêncio diante de tantas mortes precoces por subnutrição, miséria e violência. Isso é cinismo. E criminoso. Como as chacinas do Carandiru, de Corumbiara e Eldorado do Carajás, que permanecem impunes, enquanto o latifúndio prossegue imune.

Carlos Alberto Libânio Christo (Frei Betto), 51, frade dominicano e escritor, é autor de "A Obra do Artista -Uma Visão Holística do Universo" (Ática) e "Cotidiano & Mistério" (Olho D'Água), entre outros livros.

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