São Paulo, domingo, 12 de maio de 1996
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Dossiê reabre caso da morte de Marighella

CRISTINA GRILLO
DA SUCURSAL DO RIO

A Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos (do Ministério da Justiça) recebe terça-feira um dossiê que afirma que o líder da ALN (Ação Libertadora Nacional), Carlos Marighella, foi morto com um tiro no peito, à queima-roupa.
O dossiê contesta a versão oficial, que afirma que Marighella foi morto com uma rajada de metralhadora ao reagir à ordem de prisão dada pelo então delegado Sérgio Paranhos Fleury.
Na ocasião, dois policiais do Dops (Departamento Estadual de Ordem Política e Social), o delegado Rubens Tucunduva e a investigadora Stela Borges, foram feridos.
O líder da ALN, grupo que tentava depor o regime militar pela luta armada, foi morto aos 58 anos no dia 4 de novembro de 1969 no trecho da alameda Casa Branca entre a alameda Lorena e a rua Tatuí, nos Jardins, em São Paulo.
O material, preparado pela Comissão dos Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos, se baseia em três pontos. O principal é uma análise do laudo cadavérico de Marighella, feito na época pelo médico legista Harry Shibata.
Há um depoimento do frei dominicano Yves do Amaral Lesbaupin, testemunha da ação policial e uma comparação dos ferimentos de Marighella com as marcas de tiros no carro onde ele, segundo a versão oficial, se refugiou.
O dossiê afirma que Marighella foi morto com um tiro no peito "a curtíssima distância" depois de ter sido dominado pela polícia.
Quatro tiros
Marighella recebeu quatro tiros: o primeiro perfurou suas nádegas (entrou pelo lado direito e saiu pelo esquerdo); o segundo o atingiu na região pélvica (a bala se alojou no arco pubiano); o terceiro o atingiu de raspão no queixo; e o quarto tiro, que teria sido disparado à queima-roupa, fraturou uma costela, perfurou a aorta e o pulmão, causando hemorragia interna, que é a causa mortis no laudo.
A análise do laudo cadavérico e das fotos do corpo tiradas à época foi feita este mês pelo médico legista Nelson Massini, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e consultor do Ministério da Justiça no caso da chacina dos sem-terra no Pará. Além do laudo de Shibata, Massini analisou 17 fotos tiradas dos arquivos do Dops/SP.
Em sua avaliação, Massini afirma que Shibata descreve os orifícios de entrada dos tiros, mas não faz referência à presença das chamadas "zonas de contorno".
As "zonas de contorno" podem determinar a distância dos tiros -quanto mais perto, mais evidente a mancha de pólvora.
Uma das fotos do arquivo levou Massini a concluir que o tiro no peito de Marighella foi feito a pouca distância, não mais que dez centímetros. A foto mostra uma grande mancha escura ao redor do orifício de entrada do tiro.
O estudo de Massini mostra que Marighella tentou se defender segurando a arma que o atingiu. O laudo de Shibata afirma haver, na mão esquerda, "ausência da terceira falange no segundo quirodátilo (dedo da mão), com ferimento lácero-contuso no coto".
Numa das fotos, Massini observou o ferimento na mão de Marighella. "Ele tentou, instintivamente, se proteger segurando a arma para desviar o tiro. Esta lesão é um exemplo clássico de autodefesa, que consta de qualquer livro de medicina legal", disse o médico-legista em entrevista à Folha, na última sexta-feira.
Segundo Massini, a distribuição dos tiros não corresponde a uma rajada de metralhadora. "Os tiros de metralhadora são sequenciais e não fariam este tipo de ferimento."
A partir dessas informações e da comparação do laudo cadavérico com o laudo pericial, Massini concluiu que os disparos que atingiram Marighella não têm correspondente no carro em que ele foi encontrado -um Volks azul.
"De cima para baixo"
O laudo pericial do Volks afirma que o carro teve quebra total dos pára-brisas anterior e traseiro, uma perfuração no pára-lama anterior direito e perfurações nas poltronas da frente.
"Não há perfuração no carro que justifique os ferimentos. O ferimento no tórax, além de ter sido à queima-roupa, foi disparado de cima para baixo", diz Massini.
Iara Xavier Pereira, membro da Comissão dos Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos e uma das responsáveis pelo dossiê, destaca outro detalhe: apesar dos vidros estilhaçados na suposta troca de tiros, Marighella não apresenta nenhum corte no corpo.
Outra conclusão de Massini: o corpo da vítima foi arrastado para dentro do carro e deixado numa "posição impossível". Segundo o médico, pela colocação dos pés (para fora do carro) Marighella não poderia cair naquela posição depois de levar um tiro no peito.
Outro aspecto do corpo levou o médico a concluir que ele foi arrastado para dentro do carro. "Pelas fotos é possível ver que a camisa de Marighella está levantada e a calça um pouco abaixada -como se ele tivesse sido arrastado pelos braços", disse Massini.

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