São Paulo, terça-feira, 14 de maio de 1996
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Réquiem para uma democracia nascente

FÁBIO KONDER COMPARATO

Em conhecida obra de teoria constitucional, Karl Loewenstein distinguiu três espécies de Constituição, conforme a relação entre as suas normas e a realidade política: a Constituição normativa, a nominalista e a semântica. No primeiro caso, a dinâmica do poder submete-se completamente à regulação normativa; no segundo, a preponderância da Constituição sobre as forças políticas é parcial e precária, enquanto no terceiro caso a Carta Política é mero disfarce retórico para a dominação nua e crua dos governantes.
A Constituição brasileira de 1988 surgiu, inequivocamente, como nominalista. Ninguém acreditava, lucidamente, que ela seria capaz de sobrepor-se de imediato às velhas forças oligárquicas que sempre dominaram o quadro político nacional. Esperava-se, contudo, que a nova Carta exercesse um papel pedagógico sobre a nova geração de políticos que entraram em cena após o regime militar e que, em prazo não muito longínquo, a realidade política acabasse por se moldar aos princípios democráticos.
A decisão do Supremo Tribunal Federal de 8 de maio passado, denegando o mandado de segurança impetrado contra a repetida votação de uma emenda constitucional que acabara de ser rejeitada, demonstrou a fatuidade dessa esperança. O art. 60, parágrafo 5º, da Constituição proíbe que a matéria de proposta de emenda, rejeitada ou julgada prejudicada no Congresso Nacional, seja objeto de nova proposta dentro da mesma sessão legislativa (isto é, no mesmo ano).
O presidente da Câmara, após a rejeição de uma proposta de emenda constitucional, decidiu repor em votação e fazer aprovar a mesma matéria, atamancada sob a forma de um rearranjo da proposta anterior.
O Supremo Tribunal teve agora, pelo menos, a decência de reconhecer que o processo de emenda constitucional não é assunto de organização interna do Congresso. Mas dobrou-se à astuciazinha marota do presidente da Câmara. Ficamos todos assim cientes que, doravante, quem decide se o Legislativo cumpre ou não a Constituição é ele próprio e não o Judiciário, como ingenuamente supúnhamos.
Mas então, há de perguntar o conselheiro Acácio, para que servem os juízes? Por que razão haveremos de sustentar, vitaliciamente, 11 ministros de um tribunal ao qual compete precipuamente (e não secundariamente) a guarda da Constituição, segundo ela própria declara (art. 102)? Não seria mais econômico confiar essa tarefa ao próprio Congresso ou ao presidente da República? Ou então, simplesmente, não estipendiar nenhum guardião constitucional togado ou sem toga?
Em conhecida passagem de sua obra máxima, Montesquieu observou paradoxalmente que o Judiciário, de todos os Poderes do Estado, é o único que não tem poder algum. O que realmente sustenta essa instituição incumbida de julgar todos, inclusive os demais Poderes do Estado, não é a aptidão para mandar e impor, mas apenas aquela autoridade (no sentido romano do termo), fundada na confiança em sua independência.
A democracia, que é essencialmente um regime de limitação de todos os Poderes -inclusive da soberania popular, pelo necessário respeito aos direitos humanos-, não vive sem órgãos judiciários independentes e respeitados. A nossa esperança na democratização do Estado brasileiro, após o colapso do regime militar, repousava na confiança de que os nossos juízes, a começar pelos mais elevados, saberiam defender o povo contra os abusos de poder e pôr a Constituição acima das conveniências políticas momentâneas e dos interesses governamentais.
Fundava-se na convicção de que uma Constituição, contra a qual não prevalecem nem mesmo as leis, não poderia ser distorcida por regimentos internos ou artimanhas politiqueiras. Fomos iludidos.
Os verdadeiros assassinos da democracia não são os que matam os adversários políticos. São os que sufocam no nascedouro as esperanças das novas gerações.

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