São Paulo, quarta-feira, 15 de maio de 1996
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Conto inédito de Machado sai em livro

DA REPORTAGEM LOCAL

A Editora Boitempo lança amanhã um conto de Machado de Assis (1839-1908) inédito em livro. "Terpsícore" foi publicado pela primeira vez no jornal carioca "Gazeta de Notícias", em 1886.
"Não publicaremos inéditos ruins de bons escritores mortos", dizia o manifesto de "Klaxon", revista dos modernistas brasileiros. Não é o caso de "Terpsícore", segundo o crítico Davi Arrigucci Jr., que faz a apresentação do conto.
"O fato é que temos aqui a pequena obra-prima, e tão viçosa como tantas outras que saíram da pena do grande contista", escreve Arrigucci, professor de teoria literária na USP.
"Terpsícore" é um texto curto -vinte páginas de livro. Ou meia página de jornal. O conto abria o Suplemento Literário da "Gazeta" de 25 de março de 1886.
Nesse dia, Machado de Assis dividia as colunas do jornal com o escritor francês Émile Zola (1840-1902) -de quem era publicado "O Naturalismo"-, com Eça de Queiroz (1845-1900) e com o crítico Sílvio Romero (1851-1914).
Biblioteca
O texto de Machado não era exatamente desconhecido. Estava arquivado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro entre as muitas crônicas que o escritor carioca publicou em jornais. O escritor Haroldo Maranhão o garimpou entre os textos mais superficiais.

Dança e dinheiro
"Terpsícore" (nome da musa grega dança) é, à primeira vista, a história de um casal endividado - o marceneiro Porfírio e sua mulher, Glória, que um dia conseguem pagar as contas com um prêmio de loteria e esbanjam o resto do dinheiro numa grande festa.
Mas a aparente simplicidade exterior das narrativas machadianas quase sempre tramam com sua estrutura uma imagem da rudeza da vida social brasileira, como mostrou o crítico Roberto Schwarz e como também o faz Arrigucci na apresentação de "Terpsícore".
No início do conto, Glória procura consolar Porfírio, amuado com a cabeça entre os joelhos, na cama do casal. Não têm como pagar o aluguel e vão ser despejados.
Antes de ir para o trabalho, Porfírio come seu almoço: café e pão.
Machado então corta a narrativa "exterior" e indiretamente dá voz à Porfírio. O marceneiro lembra como conheceu Glória, que dançava numa festa, uma "mistura de cisne e cabrita"; lembra como se casou numa cerimônia muito acima de suas posses -por prazer.
"O verdadeiro par da dança é então o dinheiro, que falta aos dançarinos já casados e endividados no começo do conto", escreve Arrigucci.
Sem poder recorrer ao favor de um padrinho para quitar suas dívidas, Glória e Porfírio começam a se resignar a mudar de casa e a pedir mais paciência aos credores.
Mas o marceneiro ainda arrisca seus últimos mil-réis em dois bilhetes de loteria.
"No sábado, voltando para a casa com a féria no bolso, foi tentado por um vendedor de bilhetes de loteria, que lhe ofereceu dois décimos das Alagoas, os últimos. Porfírio sentiu uma coisa no coração, um palpite, vacilou, andou, recuou e acabou comprando."
Alienação Porfírio ganha na loteria. Sobriamente, decide pagar as dívidas. Mas sonha também com a mulher vestida de seda azul e com uma festa que desse o que falar.
Glória queria o dinheiro na poupança e diz que não precisa de sedas. Porfírio argumenta:
"Todos se divertiam; os mais reles sujeitos achavam um dia de festa; eles é que haviam de gastar os anos como se fossem escravos?"
O "delírio" do marceneiro vence a prudência de Glória.
"Ora, o aparente delírio pode muito bem revelar, na verdade, a Porfírio sua condição real frente ao trabalho alienado, pois parece perceber na realização livre do desejo, para além da estrita necessidade, algo que o põe de fato além da condição do escravo, a que não quer e teme se reduzir, uma vez reduzido seu universo de aspirações", escreve Arrigucci.

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