São Paulo, quarta-feira, 15 de maio de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Diagnóstico falho, proposta equivocada

ARTHUR ROQUETE DE MACEDO

Em edições recentes, a Folha abordou o drama da educação brasileira. É correta a avaliação do lamentável quadro do ensino público de 1º e 2º graus e suas consequências desastrosas para o futuro do nosso país. Nada a acrescentar, se o diagnóstico se restringisse à educação básica. Mas a análise vai além, interpretando dados sobre o ensino superior de forma total ou parcialmente incorreta, repetindo os erros daqueles que buscam atingir a universidade pública e sua gratuidade, garantida pela Constituição.
Não é verdadeiro afirmar que nas universidades públicas a maioria dos estudantes pertence a famílias abastadas. No caso da Unesp, 63% dos nossos 20 mil universitários têm renda familiar entre 2 e 15 salários mínimos. É notório, portanto, que a universidade pública hoje abriga majoritariamente filhos de famílias pobres e dos diferentes extratos da classe média, que tem perdido poder aquisitivo nos últimos anos, aumentando o número de alunos carentes. Essa situação não é diferente em outras universidades públicas.
Ao contrário do propalado por setores da elite brasileira, a universidade pública não é um "ninho de estudantes ricos" que estudaram em escolas particulares. Na Unesp, cerca de 53% dos alunos são egressos da escola pública. Ou seja, o nosso ensino superior gratuito abre as portas aos mais bem-preparados, sejam eles pobres, não-ricos ou ricos. A proporção de oriundos da rede oficial seria maior se ela tivesse a mesma qualidade da universidade pública. Portanto essa é a meta a ser perseguida.
Também não é correto afirmar que a cobrança de anuidades escolares resultaria em aumento significativo do orçamento da universidade pública ou na transferência dos recursos necessários para salvar o ensino básico. Dados internacionais mostram que apenas 14% a 18% do orçamento das universidades provém da cobrança de taxas escolares. Isso em países em que a renda per capita e o salário mínimo são muito superiores aos do Brasil.
Quanto à transferência de recursos do ensino superior para o fundamental, os defensores da idéia esquecem-se de três aspectos. O primeiro é o de que os recursos necessários para ambos os sistemas apresentam ordens de grandeza não-comparáveis. O segundo refere-se à pesquisa. Todos afirmam em alto e bom tom que o Brasil investe apenas 0,7% do seu PIB em desenvolvimento científico-tecnológico, mas esquecem de dizer que, contrariamente ao observado no Primeiro Mundo, 84% desses recursos vêm do setor público e em grande parte das universidades oficiais.
Em terceiro lugar, há o raciocínio, absolutamente falacioso, de calcular o custo do aluno da universidade pública dividindo o seu orçamento global pelo número de estudantes matriculados. Os que assim procedem esquecem que a universidade pública assume no Brasil responsabilidades que nos EUA e na Europa são atribuídas a outros setores do Estado.
Apenas os exemplos na área da saúde já mostram o erro do raciocínio. Unesp, Unicamp e USP custeiam, com recursos de seus orçamentos, quatro hospitais e vários centros de atendimento indispensáveis ao sistema de saúde pública nacional. É interminável a relação de serviços prestados à comunidade também nas áreas das ciências agrárias, biológicas, exatas e humanas.
É totalmente incorreto apregoar que o estudante brasileiro é caro. Quem afirma assim mostra desconhecer que parte significativa do orçamento da universidade pública é empregada na prestação de serviços essenciais aos segmentos mais desfavorecidos da sociedade.
Não pode soar estranho o fato de o MEC destinar mais da metade do seu orçamento para o ensino superior, pelo qual é responsável, tendo em vista que a Constituição define que cuidar do ensino básico é atribuição dos municípios e Estados, vinculando no mínimo 25% de seus orçamentos a essa finalidade.
Portanto, a premissa de privatização da universidade pública é errada na aritmética e falsa no conteúdo. Há muito trama-se contra a gratuidade do ensino superior. A volta do assunto neste momento, aparentemente de forma bem-orquestrada, soa extremamente preocupante diante da nova fase da vida nacional, baseada na democracia, na necessidade de um desenvolvimento sustentado e na competitividade indispensável para enfrentar a globalização da economia. Globalização essa que exige dos países recursos humanos qualificados e o domínio do conhecimento.
Deslocar recursos das universidades públicas constitui profunda contradição com todo o investimento feito até agora. É tratar a consequência e não a causa. Demonstra inversão de prioridades. Significa demolir as matrizes do ensino fundamental.
Para solucionar a crise da educação brasileira a proposta consequente é: investir em todos os níveis, graus e modalidades de ensino, promovendo ao mesmo tempo o aprimoramento na administração dos recursos alocados; fazer do ensino fundamental prioridade absoluta, colocando-o no mesmo patamar de qualidade do ensino superior público; promover a reforma fiscal e tributária, de onde, certamente, surgiriam recursos suficientes para dar curso às prioridades expostas; estabelecer a avaliação e o acompanhamento indispensáveis para aperfeiçoar a universidade privada; exigir da universidade pública os recursos que são de sua natureza produzir, como formação de recursos humanos qualificados, capacidade de crítica, competência científica e tecnológica, inventividade e propostas consequentes.
Do contrário, o risco é grande. Não se resolverão os problemas do ensino fundamental e, ainda por cima, vai se destruir a universidade pública brasileira.

Texto Anterior: Soros, Keynes e o mercado
Próximo Texto: A satisfação do cliente-contribuinte
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.