São Paulo, domingo, 19 de maio de 1996
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Questões de sobrevivência

MARCELO LEITE

Os ombudsmans de imprensa estão preocupados com a própria sobrevivência. Um grupo de 35 deles reuniu-se entre os dias 5 e 8 na Filadélfia (leste dos Estados Unidos) para discutir problemas comuns e constatou que o maior deles pode ser o futuro. Mais exatamente, o futuro desses postos de vigilância sobre as redações.
A ameaça pode ser rastreada nos registros da Organization of News Ombudsmen (ONO), que preparou a convenção anual: dos 38 membros ativos que tinha nos EUA, hoje há 31. Muitos jornais, submetidos à pressão dos custos, cortam postos de trabalho que a miopia gerencial entende improdutivos, como o daquele fulano cuja única função é criticar.
A seu modo, estão certos. Ombudsman não dá lucro, não como o repórter pé-de-boi que cumpre três ou quatro pautas por dia e comete dois ou três erros em cada texto que escreve. Apontando falhas e ajudando a corrigi-las, essa figura só tem o que fazer naqueles jornais que ainda não conseguem orgulhar-se por se ver reduzidos a meros "provedores de informação".
Provedor por provedor, muita gente desconfia que um bom piloto de microcomputador pode realizar melhor o serviço de empilhar um monte de besteiras na frente do "usuário".
Por paradoxal que pareça: os jornais e revistas só vão sobreviver -em papel ou qualquer outro suporte físico- se continuarem investindo na única coisa que sabem fazer (nem todos, nem sempre): jornalismo, ou a arte de selecionar no caos dos dias anteriores aquelas informações relevantes para o cidadão.
Neste campo, um ombudsman terá certamente cada vez mais trabalho.
Aposentadoria
Os defensores dos leitores também estão preocupados com o próprio futuro, no sentido individual. Tanto é que incluíram na pauta de Filadélfia uma sessão para que três deles, já fora da ativa, relatassem se há "vida depois da aposentadoria".
Uma explicação: nos EUA, o cargo de ombudsman costuma ser preenchido por jornalistas de longa experiência, no final da carreira. Há exceções, como Geneva Overholser ("Washington Post"), Miriam Pepper ("Kansas City Star") e Shinika Sykes ("Salt Lake City Tribune"), mas a média fica na casa dos 50-60 anos, e a permanência na função pode estender-se por muitos outros, pois a maioria não tem mandato fixo.
Talvez pela presença dos associados mais jovens, o debate acabou derivando para outra perspectiva muito temida: o retorno à redação. Neste ponto, foi ouvido com atenção o relato dos representantes de três jornais do Brasil (Folha, "AN Capital"/SC e "O Povo"/CE), onde prevalecem o mandato de dois anos e a indicação de jornalistas de 40 anos para menos.
Por imprudência ou ingenuidade, mas também com base em sucessões anteriores, relatei que no caso da Folha não temo grandes sequelas.
O caso Incra
Há duas semanas, ficou prometido aqui que retomaria o caso da manchete da Folha de 29 de abril ("Incra deixa de utilizar crédito de US$ 4,5 bi"). Minha conclusão: foi mesmo um erro jornalístico grave.
A razão pôde ser encontrada pelo leitor numa reportagem de alto de página publicada pelo jornal cinco dias depois, sob o título "Italiano tenta 'negócio da China' com país" (pág. 1-11 de 4/5/96). A história simplesmente não parava de pé.
Em lugar do administrador incompetente sugerido pela manchete anterior, o então presidente do Incra, Raul do Valle, parece ter cumprido sua obrigação ao desconsiderar a proposta de um tal "comandante Marcello" em nome de um "pool" de bancos.
O negócio oferecido desobedecia todas as praxes de contratação de empréstimos externos pelo governo. Não foi levado a sério em nenhuma repartição brasiliense. Pelo menos um dos bancos negou qualquer participação.
"Precipitação"
Resta saber como isso chegou à manchete do maior jornal do país. A informação foi dada em "off" (quando a fonte pede para permanecer anônima) ao repórter Helcio Zolini, da Sucursal de Brasília. Este ouviu o outro lado do Incra, como manda o "Novo Manual da Redação", mas só por intermédio da assessoria de imprensa. Aí começaram os problemas.
Tudo indica que ocorreu um mal-entendido entre repórter e assessoria, porque esta respondeu sobre outro financiamento, de valor muito menor e relacionado com informatização do órgão. A explicação foi de que o caso estava parado por falta de verba de contrapartida por parte do Incra.
A Secretaria de Redação e a Sucursal de Brasília reconhecem que houve "precipitação" na publicação de informações que precisavam ainda ser apuradas mais a fundo. Foi essa conclusão que levou à publicação da segunda reportagem, expondo a fragilidade do "negócio da China" (na qual faltou mencionar que o assunto tinha sido o principal assunto do jornal).
Raul do Valle não é mais presidente do Incra. Na verdade, quando a manchete saiu, já balançava no cargo. Ele reconhece o empenho da Folha para esclarecer a questão, mas acha que a reportagem poderia ter sido mais explícita. Reclama também que o repórter deveria ter falado diretamente com ele, em face do valor inverossímil envolvido.
Com humor invejável, Raul do Valle -que em outra oportunidade foi apresentado seminu num banheiro de aeroporto em foto da Folha- resume sem ressentimento aparente o peso da manchete em sua demissão: "Não vou dizer que teve papel determinante, mas a reportagem foi publicada num momento difícil para mim".

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