São Paulo, domingo, 19 de maio de 1996
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Sherlock Holmes e o paraíso dos pobres

ALOYSIO BIONDI

Cansado de ouvi falar em crise na Europa, Sherlock Holmes resolveu passar férias no Brasil, no verão de janeiro de 96. Logo na manhã seguinte à sua chegada, teve a certeza de que havia acertado na escolha: os jornais mostravam, em entrevistas e reportagens otimistas, que o país era um Paraíso na Terra.
Holmes, como dinossauro humanista, ficou particularmente encantado com o noticiário afirmando que, graças ao tal Plano Real, a população pobre também estava mergulhando no consumismo, comprando à larga. Sentado em sua poltrona, Holmes quase chegou ao delírio, ao passar os olhos pela primeira página de um jornal de economia, e deparar-se com o título: "Caderneta de poupança bate recordes". É o Paraíso, é o Paraíso, pensou. Poupança é um investimento típico de classe pobre. Se bateu recordes em dezembro é porque, além de consumir adoidado, o povão brasileiro ainda está conseguindo guardar seu dinheiro.
A pista indiscreta
Cachimbo na boca para melhor saborear as informações, Holmes começou a leitura da notícia. Logo no segundo parágrafo, sentiu uma pontada no cérebro: o texto dizia que o salto de R$ 2,5 bilhões no último mês de 1995 se devia, na verdade, à transferência, para as cadernetas, de dinheiro retido nos bancos há alguns anos, desde uma espécie de "confisco" de uma tal de ministra Zélia.
Mas, então, refletiu Holmes, o título é enganador.
Em outros jornais, constatou que muitos omitiam, não explicavam a origem do "recorde".
Já ressabiado, Holmes voltou à leitura e, aí, quase derrubou o cachimbo. Nos últimos parágrafos, surgiram informações que, para ele, deveriam ser as manchetes dos jornais.
De julho a dezembro, diziam os paragrafozinhos fatídicos, o número de cadernetas havia caído 11%. No ano, se reduzira de 90 milhões para 80 milhões, enquanto a imprensa alardeava o Paraíso dos Pobres.
O segredo fatal
Holmes ainda resistiu ao pessimismo que começara a invadi-lo:
- Vai ver que estou ficando catastrofista. Vai ver que quem sacou o dinheiro foi a classe rica, para comprar carros importados e badulaques em Miami.
Mas os números que se seguiam eram implacáveis, não deixavam ilusões. O jornal dizia, lá no finzinzinzinho da notícia, que as cadernetas com saldo de até R$ 100 (c-e-m reais) tinham "reduzido" sua participação no total de cadernetas de 62% para 54%, de dezembro de 94 a dezembro de 95.
Holmes estranhou que o jornal só publicasse os percentuais, sem números reais.
Resignado, o detetive tirou a maquininha de calcular do bolso e pôs-se à cata dos números sonegados pelo jornal.
1) Em 1994, as cadernetas até R$ 100 representavam 62% do total de 90 milhões de cadernetas. Eram 55,5 milhões.
2) Em 1995, contas até R$ 100 passaram a representar 54% do total de 80 milhões de cadernetas. Caíram para 42,5 milhões.
Conclusão: de 1994 para 1995 as cadernetas até R$ 100 caíram de 55,5 milhões para 42,5 milhões. Menos 13 milhões.
- É esse o número que os jornais esconderam, murmurou Holmes. É óbvio. Com o desemprego, o congelamento dos salários e aposentadorias, os pobres "rasparam" suas economias para sobreviver.
Holmes fechou o jornal e dirigiu-se ao quarto de hotel, com a cabeça estalando. No dia seguinte, embarcou de volta para seu país.
O otimismo do governo e a técnica de informação da imprensa brasileira eram mistérios que superavam sua capacidade de decifrar enigmas.

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