São Paulo, domingo, 19 de maio de 1996
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Os profetas do novo tempo

JACQUES RANCIÈRE
ESPECIAL PARA A FOLHA

"É preciso dar tempo ao tempo", adorava dizer o já morto presidente da república francesa François Mitterrand. O infeliz candidato à sua sucessão elegera, como carro-chefe de sua campanha, introduzir o país no terceiro milênio. Com certeza, as propostas sentenciosas sobre o tempo que é preciso esperar e o tempo que não espera fazem parte da sabedoria das nações e, por via de consequência, da retórica de nossos governantes. Mas todos percebem perfeitamente a valorização que lhes confere um final de século que é também um final de milênio.
Dizer que é preciso dar tempo ao tempo equivale a arvorar-se em juiz histórico do período das revoluções e dos comunismos, no qual se identificava a marcha do tempo ao advento de uma nova era. É nos dizer, em suma, que o tempo nada mais é do que o incompreensível intervalo necessário para que o açúcar se dissolva. Tomar, ao contrário, o 1º de janeiro do ano 2000 como o início de uma nova era que, logo de saída, exige todo nosso esforço e nossa inteligência é nos dizer que o tempo é a potência inesgotável de produção do novo e da vida à qual devemos nos identificar, sob pena de perecer.
Tais fórmulas contrastantes do ceticismo "fin-de-siècle" e do novo milenarismo indicam bem a estranha mistura de realismo e utopia que caracteriza o pensamento reinante. A crer no discurso dos sábios, nosso final de século é a era do realismo enfim conquistado. Sepultamos o marxismo e despachamos as utopias. Enterramos também o que os tornava possível: a crença no tempo como depositário de um sentido e de uma promessa. Eis aqui o significado do "fim da história", cujo tema causou sensação anos atrás. O "fim da história" é o fim de um tempo em que se acreditava na "história", ou seja, num tempo em marcha rumo a um objetivo, rumo à manifestação da verdade e ao advento da emancipação.
Os finais de século, em geral, assumem a tarefa de enterrar o passado. Mas o nosso acrescenta uma pitada de ressentimento bastante peculiar a tal incumbência de época. Os pensadores que se especializaram em nos lembrar, sem descanso, todos os horrores do século nos repetem, igualmente sem trégua, que tais atrocidades são tributárias de um crime fundamental. Esse crime é ter acreditado que a história guiava-se por um sentido e que cabia aos povos realizá-lo.
Ficou assentado que não acreditamos mais em promessas. Agora somos realistas. Ou, em todo caso, nossos governantes e nossos sábios o são por nós. Não devemos mais alimentar esperanças de que raiem os amanhãs ou de que a liberdade triunfe sobre a opressão. Rogam-nos apenas aguardar a mudança da "conjuntura". A medida básica do tempo realista não é o presente (devemos saber aguardar). Mas, tampouco, é o futuro remoto. É o tempo da conjuntura: trabalhamos em vista do semestre ou do ano seguinte.
Mas não é tão vantajoso assim ser realista, e a modéstia do tempo que é preciso esperar revela subitamente sua outra faceta: o desvario do tempo que não espera. O peculiar do tempo não é apenas ser lento; é jamais se interromper. Os humanos, como sabemos, possuem uma deplorável tendência a sucessivas interrupções.
Para alcançarmos, no próximo ano, 0,2% a mais de crescimento e 2% a menos de desemprego, é necessário que nos mobilizemos em tempo integral, que deixemos de nos apegar, como retrógrados, à "rigidez" da jornada de trabalho e de sua valoração em salário, que nos ponhamos à inteira disposição do tempo. É preciso que nos tornemos plenamente "flexíveis". Não que o tempo tenha sempre necessidade de nós; mas sempre pode tê-lo. E é preciso que estejamos sempre a postos, solicite ele ou não nossos serviços. O tempo nos brindará com seus modestos frutos, sob uma única condição: que ponhamos fim às interrupções, tanto as dele quanto as nossas.
Walter Benjamin evoca, em suas "Teses Sobre a Filosofia da História", os insurrectos da Revolução de 1830 que teriam manifestado simbolicamente seu desejo de barrar o tempo ao descarregar seus fuzis sobre os relógios. Nossos governantes e nossos empresários realistas são utopistas de um outro gênero. Eles também destruiriam de bom grado os relógios, mas por outra razão -por marcarem as interrupções: fim do trabalho, fechamento das lojas, horário de recreio, término da aula de história e início da aula de matemática...
Eis aqui o ponto em que a triste realidade econômica sublima-se em grande mística do novo milênio. O futuro a ser construído cautelosamente, passo a passo, torna-se o Futuro que nos chama e não espera, o Futuro que arriscamos perder para sempre se não nos apressarmos, se não nos livrarmos de tudo aquilo que nos impede de abraçar seu ritmo.
Os administradores "fin-de-siècle" do realismo desencantado tornam-se então os profetas do novo milênio. Eles nos ensinam a submissão à lei do presente e do único possível; exaltam agora o desdobramento infinito de nossas potencialidades de ação e imaginação; convidam-nos a despojar plenamente o antigo homem, a mobilizar em nós a energia que nos fará homens do futuro.
O tempo deixa de ser o suporte de uma promessa chamada história, progresso ou libertação. Agora é ele que faz as vezes de promessa; agora ele é a verdade e a vida que deve penetrar nossos corpos e nossas almas. Tal é, em suma, a quintessência da ciência futurológica.
Na verdade, uma tal ciência não nos ensina grande coisa sobre o futuro. Quem lê sua doutrina para aprender de que será feito o tempo futuro geralmente se decepciona.
Ora, seu propósito é outro: nada de nos lecionar o futuro, mas nos fazer seres do futuro. Eis por que a reforma da escola está sempre no coração da promessa futurológica. A escola é o "locus" mítico onde se pode fantasiar a congruência entre o processo de maturação de um indivíduo, o futuro coletivo de uma sociedade e o curso harmonioso e ininterrupto do tempo.
A título de mudanças indispensáveis, Alvin Toffler sugeriu recentemente uma singular reforma da escola: esta deveria abandonar sua velha rotina do ensino por disciplinas e ceder passo ao estudo das idades da vida: a infância, a adolescência, a maturidade, a velhice. Não seria mais, como antigamente, uma escola de preparação para a vida. Agora estaria em jogo tornar uma e outra indiscerníveis, ou seja, formar seres inteiramente feitos de tempo. Pois o Tempo que não se presta mais à realização de uma utopia tornou-se ele próprio a utopia derradeira. Pois o realismo que aspira a nos libertar da utopia e de seus malefícios é ainda ele próprio uma utopia. Ele promete menos, é verdade. Mas não promete de modo diverso.

Tradução de José Marcos Macedo.

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