São Paulo, domingo, 19 de maio de 1996
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Maria Antonieta foi mais sensata

ABRAM SZAJMAN

A capacidade de distorcer os fatos e a realidade não é privilégio exclusivo de alguns círculos da sociedade brasileira. Na verdade, o Brasil tem tradição nesse campo e, nele, nada fica a dever a ninguém. No século passado, quando as forças progressistas da nação denunciavam a natureza perversa e ultrapassada das relações de produção da época, a minoria conservadora do império, impregnada de instintos cruéis e interesses mesquinhos, saiu em defesa do status quo, prevendo o colapso da atividade econômica caso os escravos fossem libertados.
Em pouquíssimo tempo, a história se encarregou de provar o contrário e de revelar a verdadeira essência daquela mistificação: com a decretação da Lei Áurea, o país estaria apto a dar o salto de qualidade representado pela universalização do sistema assalariado de trabalho (característico do capitalismo), e quem acabaria perdendo não seria a economia do país e sim a economia escravista.
O mesmo aconteceu nos anos 30 e 40 deste século. A criação das leis trabalhistas e do sindicalismo, medidas duramente criticadas, combatidas e condenadas ao malogro pelos segmentos mais atrasados do patronato nacional daqueles tempos, não resultou na quebra das empresas, mas sim no desenvolvimento acelerado delas e em um passo decisivo para a promoção da justiça social e da distribuição da renda.
A esses dois exemplos de falsidade soma-se agora a campanha desencadeada contra direitos e conquistas dos trabalhadores, em nome da luta pela extinção do chamado "custo Brasil". Uma nova e ardilosa tentativa de escamotear a verdade, em benefício de privilégios e lucros obtidos à custa da manutenção de políticas desastradas e elitistas de desenvolvimento, confunde e ilude as pessoas.
O elevado custo da produção brasileira, fator que reduz a níveis suicidas a competitividade externa de nossas mercadorias, além de desestimular investimentos produtivos internos decorre pouco dos salários e encargos, diretos ou indiretos, sobre a folha de pagamento. Salário mínimo de R$ 112 e média salarial em torno de R$ 160/mês, computando-se o setor informal, isentam os trabalhadores brasileiros de responsabilidades no fechamento das salgadas contas empresariais.
Na verdade, o "custo Brasil" tem raízes fincadas na corrupção e na burocracia administrativas, na gestão desastrada dos negócios públicos, nas absurdas taxas de juros, na carga tributária, na ineficiência e no obsoletismo das nossas infra-estruturas urbana, aduaneira, portuária, de transportes em geral e de comunicações, no atraso tecnológico de inúmeros setores produtivos, na apatia e no despreparo gerencial de parcela considerável do empresariado.
Cuidado, senhores, em 1789 o descaso absoluto de um grupo pela sorte da maioria decretou a ruína da realeza francesa e, ainda hoje, lança no ar uma advertência: nesse passo, os empregados acabarão reivindicando a volta da escravidão. Assim, pelo menos, terão garantidas necessidades mínimas de sobrevivência, como casa, comida, alguma vestimenta e alguma assistência à saúde.
Maria Antonieta, última, fútil e desinformada rainha da França, de certa maneira foi menos insensata. Quando lhe disseram que o povo reclamava da falta de pão, perguntou: por que então o povo não come brioches? Ou seja, para salvaguardar suas regalias (o palácio Trianon, o jardim das Tulherias, as festas na corte, o ócio perene -e os anéis), ela nem mesmo pensou em recomendar novos confiscos.

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