São Paulo, domingo, 19 de maio de 1996
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Por uma paz definitiva no Líbano

MICHEL AOUN

Mais uma vez é o sangue que vem tirar o Líbano da noite do esquecimento! Sinal da decadência deste final de século, o massacre de uma centena de inocentes e o êxodo de milhares de outros vêm lembrar ao mundo o drama de um povo que se acreditava, falsamente, haver recobrado a paz, quando, na realidade, se vergava sob o jugo da ocupação. Hoje Israel, ontem Síria -o canhão troca de lado, mas é sempre o mesmo povo que é devastado.
A carnificina de Qana mexeu com as consciências, e os grandes deste mundo não hesitaram em denunciar o crime. Isso, infelizmente, não basta. Para que outra carnificina não seja cometida amanhã contra nosso povo, para que esse despertar das consciências não se transforme em aval de uma perversidade cometida contra um país membro da ONU, para que não se cometa um crime ao procurar reparar outro, chegou a hora de encontrar uma solução definitiva para a crise libanesa.
Devo dizer, antes de mais nada, que a raiz da deterioração da situação no Líbano está na dupla ocupação. É por causa da ocupação que o Líbano se transformou no palco da guerra dos outros, num viveiro onde se reproduzem os fundamentalismos de toda sorte. Como pode Israel pretender pressionar o atual governo libanês a fim de que este garanta a segurança de suas fronteiras quando sabe perfeitamente que este último, submetido à Síria, se vê reduzido a contar os mortos e não dispõe da menor margem de manobra?
Todo mundo sabe, e não é segredo para ninguém, que é a Síria que fornece armas e munições ao Hizbollah. Contrariamente a todas as outras milícias, esta última não foi desmantelada em conformidade com o acordo de Taef, do qual o regime atual quer ser defensor principal. O Hizbollah desafia diariamente a autoridade do Estado e, desse modo, constitui uma forma de ocupação estrangeira.
Na verdade, a Síria, por meio de seu apadrinhamento do Hizbollah, visa um objetivo triplo: reforçar sua aliança com o Irã, oferecendo a esse país uma cabeça de ponte às margens do Mediterrâneo, fazer pressão sobre Israel nas negociações atualmente em curso e manter um clima de instabilidade no Líbano, fato que, aos olhos do mundo, legitima sua ocupação do país.
Fiel a seu papel de bombeiro piromaníaco, instigando os conflitos para, a seguir, se ver encarregado de extingui-los, o regime sírio obtinha ontem, em troca de sua participação na Guerra do Golfo, sinal verde para arrasar o derradeiro reduto livre do Líbano. Será que hoje exigirá pagamento em moeda forte por seu controle sobre o Hizbollah? Será que, a pretexto de assegurar a segurança da fronteira norte de Israel, lhe será dado um cheque em branco para manter sua ocupação do Líbano?
Que não me interpretem mal: não procuro, de forma alguma, atenuar o belicismo de Israel e, menos ainda, desculpá-lo pelo crime perpetrado contra meu povo. Muito pelo contrário -Israel ocupa meu país e deve retirar-se incondicionalmente, obedecendo as resoluções do Conselho de Segurança. Digo apenas que a política síria no Líbano oferece a Israel o pretexto para intervir militarmente.
O governo libanês tem sua pesada parcela de responsabilidade nisso, na medida em que funciona como fiador do ocupante e participa da deturpação da causa do país diante das instâncias internacionais, entravando seu resgate. Se a reconstrução do Líbano é uma necessidade incontestável, quando ela oculta a realidade do que está em jogo transforma-se em apologia da colaboração, e denunciá-la passa a ser exigência da justiça. A fórmula de Taef, que consistia em congelar qualquer solução real enquanto se aguardava uma solução definitiva do conflito no Oriente Médio, não passava, de fato, de uma guerra contida, mascarada.
Digo isso no momento em que se multiplicam as iniciativas visando o apaziguamento da mais recente escalada militar e previno contra qualquer política feita de meias medidas. O problema libanês não pode ser resolvido por doses homeopáticas. Sob o pretexto de pôr fim à violência, os acordos parciais de hoje conduzem, inevitavelmente, às guerras de amanhã.
Se existe uma lição a tirar desses últimos acontecimentos é que a segurança, condição prévia e imprescindível a qualquer acordo, não pode ser possível exceto na condição de advir de uma autoridade libanesa liberta de qualquer tutela externa. Se alguma assistência é necessária, é a da ONU, já presente no território libanês.
É por isso que conclamo a:
1) A constituição de um governo de união nacional, primeiro passo para a recuperação de uma autoridade libanesa soberana, restabelecendo o Líbano enquanto sujeito e não objeto das negociações de paz, reabilitando o Estado libanês como único fiador da segurança em suas fronteiras, permitindo que ele, com isso, cumpra sua vocação: ser agente de paz e de estabilidade no Oriente Médio.
2) A realização de uma cúpula tripartite agrupando Síria, Israel e Líbano para discutir os entraves à paz na região e estabelecer um calendário para a retirada de todas as tropas estrangeiras do Líbano. A presença de um ou vários padrinhos internacionais só pode ser útil, a fim de acelerar a normalização e garantir sua aplicação e seu controle.
3) Os acordos parciais devem dar lugar ao acordo definitivo. A lógica da paz precisa vencer a política do apaziguamento. Conclamo a uma mudança dos paradigmas diplomáticos por meio dos quais se apreendeu até hoje o problema libanês. Mais uma vez é preciso conformar-se com essa constante da história: a liberdade é a meta, a paz seu resultado!

Tradução de Clara Allain

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