São Paulo, segunda-feira, 20 de maio de 1996
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A vara etrusca

JOSUÉ MACHADO

Os etruscos eram radicais com os redatores que confundissem a preposição "a" com "há", de haver. Punham o redator confuso de bruços na escrivaninha de trabalho (eles falavam "escrivaninha" em vez de mesa) e davam-lhe três varadas de marmelo na bunda nua diante de toda a redação. Se o computador é que havia errado, eles o jogavam no rio Tibre. Tèvere para os íntimos. Em três anos e meio não havia mais quem cometesse tal confusão. Isso ocorreu no século 8 a.C.
Por aqui, em nossos tempos de paraneoliberalismo-salve-se-quem-puder-que-se-dane-o-resto, o tratamento é menos radical. Não há tratamento. Por exemplo, uma revista de semanas atrás publicou a seguinte legenda do gráfico sobre eleições, entitulado "Quem sai na frente":
"Há nove meses das eleições municipais, alguns nomes já começam a despontar nas principais capitais brasileiras."
Não convém falar da rima rica que enfeita o textículo -municipais, principais, capitais-, mas "há" nove meses das eleições que vão ocorrer no fim do ano?
O redator distraído escreveu algo equivalente a "as eleições vêm aí 'faz' nove meses" ou "daqui 'há' nove meses teremos eleições..."
Redator criativo. Ou computador rebelde. Essa é por certo maneira original de chamar a atenção para uma notícia. Não há quem tenha lido dois livros, mesmo que do Paulo Coelho, que não pare surpreso para reler a extraordinária peça.
O redator sabe, é claro, que para eventos por ocorrer usa-se a preposição "a", que o Criador criou para isso mesmo:
"Daqui A três anos, quando o exército de desempregados for de 25% da população ativa, teremos novas eleições presidenciais."
"A nove meses do nascimento do filho de Madonna..."
Sabe também, por certo, que o "haver" impessoal foi feito para lembrar o passado:
"FHC foi eleito há (faz) um ano e pouco com um programa de cinco pontos."
Esse "há", como aprendemos na infância, pode ser substituído por "faz", coisa impossível quando se fala de fatos por vir com "a":
"Ele quer ser reeleito daqui a três anos."
É só tentar substituir esse "a" por "faz" para perceber que haverá na frase tanto sentido quanto no casamento do Michael Jackson com aquela senhora ou na entrega do filho da Xuxa pela cegonha.

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