São Paulo, segunda-feira, 20 de maio de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

É preciso saber ver

ELLEN GRACIE NORTHFLEET

Para bem "ver" é necessário algum grau de conhecimento do objeto da investigação, sob pena de não se perceber aquilo que é realmente significativo.
O deputado Antonio Kandir abaliza-se em analista severo do Poder Judiciário, elaborando generalizações que estão longe de corresponder ao dia-a-dia de trabalho que enfrentamos.
Em homenagem à boa-fé, que se pressupõe presente nas afirmações de um representante de parcela do eleitorado paulista, é que me adianto a oferecer ao articulista melhor base de raciocínio do que os dados parciais que o levaram a conclusões equivocadas.
O autor se surpreende ao verificar que, entre 1987 e 1996, o crescimento dos gastos com pessoal supera, em percentual, a rubrica correspondente dos demais poderes da República.
Esqueceu o fato que, entre uma e outra data, foi editada a Constituição Federal de 1988, e que esta criou cinco Tribunais Regionais Federais (descentralizando a competência que antes tocava ao Tribunal Federal de Recursos).
Além disso, a Constituição cidadã criou também o Superior Tribunal de Justiça. Esse fato significou, apenas no Tribunal da 4ª Região (PR, SC e RS), o julgamento de 188.209 processos até 31 de dezembro do ano passado.
O Tribunal da 3ª Região, com sede em São Paulo (SP e MS), foi responsável pela apreciação de 278.843 recursos no mesmo período. E o Superior Tribunal de Justiça, a quem compete dar a última palavra sobre a interpretação da lei federal, apreciou 194.598 feitos em grau de recurso especial.
Em média, cada juiz federal de primeira instância decidiu, ao longo do ano de 1995, 709 processos. Cada magistrado de corte de apelação apreciou 2.243 recursos.
A grande massa de trabalho tem tido efeitos perversos. Ela até mesmo impede os juízes de divulgarem adequadamente as dificuldades que enfrentam para conhecimento da sociedade em geral e, mesmo, de seus representantes perante o Parlamento.
Ocupados exclusiva e exaustivamente com suas tarefas, sofrendo pressão constante das pilhas de processos e sensíveis à realidade social que se oculta dentro dos autos, preferem os juízes debruçar-se sobre suas mesas de trabalho a polemizar sobre as deficiências que reconhecem existentes, mas cuja solução passa, em larga medida, pela atuação dos outros poderes.
Essa dependência, que já foi mais acentuada, teve remédio parcial na Carta de 88, a qual assegurou autonomia administrativa e financeira ao Poder Judiciário. A recuperação do tempo perdido, porém, não se faz de imediato.
O "poder desarmado", que vivera até então da boa vontade dos outros dois, vendo minguarem, ao sabor da circunstância, os recursos necessários ao atendimento de suas tarefas, defrontou-se com uma considerável demanda reprimida.
Por isso, projetaram-se reformas e realizaram-se concursos de acesso para juízes e servidores. Tudo isso leva a concluir que os aumentos verificados e os projetados na rubrica de pessoal não configuram absurdo inexplicável, mas a reestruturação necessária ao exercício eficiente da prestação jurisdicional que nos compete.
Quanto aos indicativos que o deputado utiliza para concluir que a Justiça é ruim, a "impressionante impunidade" não pode ser creditada, sem mais, aos julgadores, cuja tarefa não consiste em condenar sempre, mas em assegurar o devido processo legal para que os acusados tanto quanto os acusadores possam formular suas razões e comprovar suas afirmativas.
Talvez no desaparelhamento das polícias e das promotorias se encontre a resposta para a absolvição de pessoas a quem a opinião pública, em grande parte formada pela mídia, condenou antes mesmo da formulação das denúncias.
Também foi referida a "frequência com que cidadãos brasileiros deixam de recorrer à Justiça" como um sinal de sua inoperância. Ora, no ano de 1994, foram distribuídos, somente em primeiro grau de jurisdição, mais de 5 milhões de processos.
A média de um processo para cada 30 habitantes equipara-se às do Primeiro Mundo e demonstra confiança da população no Poder Judiciário.
No Brasil, tem ele sido depositário da inconformidade dos cidadãos contra as agressões ao direito oriundas das mais diversas fontes.
Planos econômicos, por exemplo, ao introduzirem medidas impensadas e incompatíveis com as garantias constitucionais, foram responsáveis por picos de distribuição na Justiça Federal.
O bloqueio dos cruzados novos, por exemplo, resultou em número recorde de ações judiciais. Naquela ocasião, como em outras, foi no Judiciário que o cidadão encontrou o respaldo necessário para fazer respeitar o seu direito.

Texto Anterior: Uma nova Justiça Militar
Próximo Texto: Questão de coerência; Esclarecimento; Caso Banespa; Glauber e o neoliberalismo; Crítica; Justificativa; Cobrando FHC; Protesto dos gaúchos; Abuso de autoridade; Lixo na rua
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.