São Paulo, terça-feira, 21 de maio de 1996
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Desinteresse prematuro

ANDRÉ LARA RESENDE

Há períodos em que o noticiário me aborrece. Não apenas o noticiário político e econômico que acompanho por dever de ofício: o atoleiro das reformas, a vitória dos ruralistas, os novos ministros, a marcha dos empresários.
Me aborrecem particularmente os assuntos "modernos": o casamento de homossexuais, o filho da Madonna, as entrevistas de Camille Paglia, e por aí afora.
Não é um sentimento confortável, mas desconfio que não seja incomum. "Les événements m'ennuie" -os acontecimentos me aborrecem-; ouvi, há muitos anos, da boca de um ilustre jornalista, a frase de Paul Valéry cuja sonoridade em francês me encantou muito antes que eu pudesse me identificar com ela.
Pois não é que abro uma revista portuguesa, ao acaso, e a encontro citada por Antonio Alçada Batista. O romancista se pergunta se ainda há interesses que nos restam porque, em certa medida, chegou à fase da vida de que falava Valéry. A certa altura, continua, desenha-se com grande nitidez que a vida da maior parte das pessoas foi gasta em coisas que não valiam a pena e que o sistema de aspirações que escolheram era de uma pobreza atroz.
Alçada Batista diz sentir-se um privilegiado porque se atreve a reconhecer que não realizou ainda o mais importante de sua vida que, infelizmente, não consegue ainda saber bem o que é. Mas, em seguida, nos dá uma pista.
Afirma ter consciência de que sua relação com a transcendência ainda está por resolver. O despojamento da maior parte dos interesses do mundo que começa a sentir ou tem uma contrapartida séria nesse outro caminho ou ficará condenado àquele desinteresse por tudo que caracteriza a velhice e faz dizer aos médicos a respeito dos moribundos: "Esse já está desinteressado...".
Pois tenho a impressão de que há hoje algo mais do que o passar dos anos no desinteresse pelo mundo. Sempre tivemos uma relação ambígua com o novo. As mudanças são ao mesmo tempo desejadas e temidas, bem-vindas e amaldiçoadas.
É provável que nunca nos livremos do confronto entre o antigo e o moderno, que exprime a tensão natural e biológica entre estrutura e evolução.
Mas há no mundo moderno uma crescente identificação do novo com o bom, como que por definição. Eis porque a palavra reacionário tem uma inevitável conotação pejorativa. Daí à conclusão de que toda mudança é boa, todos os valores devem ser implodidos, pois isso é progresso e, portanto, desejável, é um pulo. Acrescentem-se os meios de comunicação de massa, a competição comercial, a publicidade e o resultado é o colapso de todo critério humanístico e artístico.
Sem parâmetros senão o da novidade e da audácia para implodir valores, somos tomados por um turbilhão anestesiante. Nos desinteressamos todos. Mas onde encontrar refúgio? Não é só Alçada Batista que ainda tem por resolver sua relação com a transcendência. A laicização do mundo moderno é uma inevitável decorrência do avanço da razão secular. Procuramos desesperadamente afirmar nossa modernidade e simultaneamente escapar dos seus efeitos.
Usamos toda sorte de artifícios intelectuais para nos convencermos que algum sentido pode ser restaurado ao largo do legado religioso tradicional devastado pela modernidade. Como, desgraçadamente, tal tarefa não parece possível, corremos o risco de, em breve, estarmos todos já desinteressados, muitos anos antes do leito de morte.

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