São Paulo, quinta-feira, 23 de maio de 1996
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Poeta inglês devassa o universo da noite

JOSÉ GERALDO COUTO
DA REPORTAGEM LOCAL

Noite, segundo a definição do "Dicionário Aurélio", é "o espaço de tempo em que o Sol está abaixo do horizonte". Mas também, em sentido figurado, "cegueira, ignorância, trevas, tristeza, sofrimento".
"Noite", do inglês A. Alvarez, 65, que a Companhia das Letras está lançando no Brasil, mostra que a noite tem sido, de fato, tudo isso na vida e na imaginação do homem. Mas não só.
A noite é a dimensão em que se revela o "duplo" de cada indivíduo, seu lado oculto durante a agitação diurna. É tão vital para a saúde física e mental do homem quanto o dia -e, de determinados pontos de vista, muito mais bonita.
Como sugere seu subtítulo -"A vida noturna, a linguagem da noite, o sono e os sonhos"-, o livro de Alvarez é uma tentativa ambiciosa e única de abarcar todas as faces da noite.
Ali estão desde um estudo da "colonização da noite" ao longo dos séculos, por meio do progresso da iluminação, até a descrição do estágio em que se encontra a fisiologia do sono. Da noite vista do ângulo social (a vida e as profissões noturnas) à "noite dentro da noite" dos sonhos de cada indivíduo.
Enfim, a noite dos cientistas e dos poetas, dos psicanalistas e das prostitutas, dos guardas noturnos e dos bêbados.
Poeta e ensaísta, autor de um tremendo estudo sobre o suicídio ("The Savage God"), Alvarez não se limitou a fazer um livro especulativo com base em testemunhos de segunda mão.
Entregou-se a um corpo-a-corpo com seu objeto: submeteu-se ao monitoramento de seu próprio sono num laboratório especializado, conviveu com policiais que faziam a ronda urbana noturna, mergulhou no poço escuro de suas próprias lembranças.
Fez um livro que, escrito em primeira pessoa, mistura memórias pessoais, crítica literária (há capítulos sobre Coleridge, Nerval, Stevenson, surrealismo), divulgação científica, história social.
Escreveu, deliberadamente, para os leigos, mas com profundo conhecimento de causa.
Noite para poucos
Na introdução do volume ("Faça-se a Luz"), aprendemos que foi só nos últimos cem anos, com o desenvolvimento da luz elétrica, que mudou radicalmente a relação do homem com a noite.
Até então -e desde cerca de 350 mil anos atrás, quando a humanidade começou a dominar o fogo-, a noite era um território vedado à maioria dos indivíduos. Era o país dos malfeitores, dos loucos e desajustados -ou então dos muito ricos, que podiam sustentar o luxo da iluminação. Hoje acontece o contrário: é quase impossível encontrar a escuridão absoluta.
Outra passagem empolgante é a dedicada ao laboratório do sono. As conclusões dos estudiosos são taxativas: ao contrário do que crê o senso comum, durante o sono o cérebro não tem descanso. Raciocina, reage a estímulos externos, resolve problemas e realiza a mais misteriosa das atividades: sonha.
"Em média, durante uma noite, uma pessoa sonha de uma hora e meia a duas horas. Se chegar aos 70 anos, terá passado 23 deles dormindo e, não importa de quanto se recorde, entre cinco e seis desses 23 anos terão sido gastos em sonhos vívidos", escreve Alvarez.
Domínio da poesia Dos medos ancestrais que remontam à pré-história e sua escuridão prenhe de monstros à moderna psicanálise e aos laboratórios do sono, Alvarez passa em revista toda a busca do homem por compreender e controlar o que lhe acontece à noite.
Uma busca em grande parte fracassada. Por maiores que tenham sido as descobertas da psicanálise e da fisiologia do sono, a "noite dentro da noite" guarda ainda um núcleo insondável e irredutível.
Continua sendo verdade o que Heráclito disse há 2.500 anos: "Para os que estão acordados há um só mundo comum; mas quando está dormindo, cada homem se volta para seu mundo privado".
Talvez por isso a noite continue a ser, mas do que da ciência, o domínio da poesia.

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