São Paulo, sábado, 25 de maio de 1996
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Bem-vindo à terra do homem sem objetividade

MATINAS SUZUKI JR.
EDITOR-EXECUTIVO

Meus amigos, meus inimigos, agora que estamos próximos das definições do Campeonato Paulista (que envolve o jogo do Palmeiras, hoje), da Copa do Brasil e da Libertadores, e, também, com a proximidade dos jogos da seleção de futebol na Olimpíada, as paixões dos torcedores brasileiros voltam a emergir no tecido cutâneo.
Para a imprensa esportiva, de uma maneira geral, este é um momento de provação (assim como as eleições, e o clima partidário que as envolvem, criam os seus constrangimentos para o jornalismo político).
Não existe paixão mais irracional do que a da torcida de futebol. Essa paixão só pode ser medida pela sua negativa, isto é, pela negação radical de qualquer identificação com o Outro. Para o torcedor, o Outro não, existe, ou melhor, não deveria existir.
Faz parte do universo do Outro, o jornalista esportivo. Basta ele fazer alguma crítica ao time de preferência do torcedor para que, imediatamente, o jornalista se transforme em cúmplice do Outro.
O universo do torcedor é o de uma identificação sem fronteiras, primária, narcisista (acha feio o que não é espelho, lembra-se?). Se um jornalista não fala o que ele quer ouvir ou não escreve o que ele quer ler, se não dá espaço para a cobertura do seu time, é porque ele está a serviço de outro time.
Já participei de vários tipos de coberturas. Na política, por exemplo. Mesmo levando em consideração o acirramento de ânimos em vésperas de eleições, jamais me perguntaram se sou filiado (não sou, aliás) ou se tenho simpatia (também não tenho) por algum partido.
Uma coisa que me chamou a atenção quando comecei a escrever aqui sobre futebol foi o fato de ter que responder, uma, duas, cinco, dez vezes por dia se torço para algum time.
O torcedor só consegue perceber o mundo por meio de uma mediação: a identidade clubística. Fora dela, não há vida, não diálogo, não há troca.
Mas, simplesmente, por que é preferível ter o jornalista torcendo para o inimigo, mas operando (na sua maneira de ver) com o único (para ele) pressuposto inteligível (por ele) neste mundo.
O odiável, o insuportável, o terrível, o incompreensível é alguém não torcer para ninguém. Porque este gesto solapa a única verdade fundamental da sua vida: um homem (ou uma mulher) tem que ter um time. Ele prefere que o jornalista torça para o time de seus desafetos porque só o anunciar dessa paixão é suficiente para rebaixar qualquer consideração objetiva sobre o seu próprio (dele, torcedor) time.
O brasileiro escolhe o seu time antes de formar as suas convicções culturais, políticas, antes de estabelecer as bases do seu gosto pessoal, antes do seu primeiro beijo na boca, antes de ser gente. Sua formação, seu mundo inteiro, cresce mediado pelas cores de um time.
Na hora H, aceitar a independência jornalística seria o mesmo que sabotar a sua vida inteira. Bem-vindo, pois, à terra dos homens sem nenhuma objetividade.

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