São Paulo, segunda-feira, 27 de maio de 1996
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Não + não = a sim?

JOSUÉ MACHADO

Duas negativas constituem uma afirmativa em português? É o que supõem alguns leitores. Fredie Souza Didier Júnior (Salvador BA), Godffried Kõberle (Campinas, SP) e Marden Cicarelli Pinheiro (São Paulo, SP) lembram que em lógica e matemática duas negativas resultam em afirmação.
No latim também, mas não em português. Nem em francês. Faz parte da sintaxe de nossa língua o reforço formado pela dupla negação. A língua é assim, que se há de fazer?
A dúvida surgiu da observação desta coluneta ("Ela come qualquer um", em 15/4/96), de uma afirmativa do porta-intenções Sérgio Amaral. Disse ele que FHC "não estimula qualquer iniciativa nesse sentido (reeleição)", quando deveria ter dito em português que "FHC não estimula nenhuma iniciativa nesse sentido". Ou "Não estimula iniciativa alguma..." O "qualquer" usado por Amaral com pretenso sentido negativo é anglicismo triste, porque "qualquer" não funciona como negativo. Se não estimula qualquer, estimula alguma específica.
"I don't have any money in my pocket", exemplo do leitor Marden Ribeiro, traduz-se por "Não tenho nenhum dinheiro (ou dinheiro nenhum) no bolso". Ou "não tenho dinheiro algum". E não "não tenho qualquer dinheiro". Se não tem qualquer, tem algum.
A dupla negativa "não tenho nenhum" afligiu alguns leitores. Um deles, Fredie Didier, chega a dizer que "Não quero nada' significa que quero alguma coisa".
Por todos os ACMs! Brincadeirinha do Fredie.
Isso só teria sentido se fosse dito por um daqueles políticos que dizem o contrário do que pretendem, todos sabem disso e ninguém estranha:
"Eu não quero nada do governo. Estou votando nas reformas de acordo com minha consciência."
"Eu não quero nada" continua significando que não quero coisa nenhuma, neca, nonada, picas, como dizem pessoas rudes e registra o Aurélio. "Não quero nada" é negativa perfeita e reforçada. Tem o sentido de não, no, non, no, non, non, nein, niet.
Um patrício do Didier, Rui Barbosa, escreveu:
"Ninguém nunca jamais reconheceu..." ("Discursos e Conferências".)
O luso Castilho:
"De que nunca jamais foi nem sequer aberto."
Veja quantas negativas juntinhas e harmoniosas reforçando a idéia de negação.
Machado de Assis:
"A agulha não disse nada."
"A linha não respondia nada; ia andando."
Camilo Castelo Branco:
"Não há relação nenhuma entre sensibilidade moral e as raízes capilares."
E Antônio Pereira Figueiredo, na Bíblia:
"A nós não é permitido matar ninguém." (S. João, 18:31.) (Serve para a polícia do Pará.)
Pode-se encher o jornal de domingo com exemplos de dupla negação de autores variados, de Gil Vicente a Luíza Brunet, passando por todos os portugueses e brasileiros que usaram da pena com brilho. Seria quase tão agradável, como a "Voz do Brasil" ou o encantador horário político obrigatório.
Os amantes da lógica e da matemática não devem estranhar, porque a dupla negativa é comum também no francês:
"Nul ne l'ignore." (Ninguém ignora isso.)
"Elle compte sur votre amour et non pas sur votre pitié." (Ela conta com (quer, espera) seu amor e não (nunca) (com) sua piedade.)
Não é demais lembrar o patriótico verso:
"Criança, não verás país nenhum como este!"
Poderíamos dizer também de cada governo que se instalou, de Jânio em diante:
"Não verás governo nenhum como este!" Nunca!

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