São Paulo, quinta-feira, 30 de maio de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Olho clínico

MOACYR SCLIAR

Três dias depois de admitida na empresa ela notou que o gerente a olhava de modo estranho. A princípio pensou que ia ser vítima de assédio sexual; mas logo concluiu que não corria tal risco. Porque o olhar do gerente -atento,inquisitivo, preocupado até- não era de modo a seduzir ninguém. Era um olhar estranho, isto sim. Além disto, parecia estar lutando com uma espécie de tentação; como se quizesse dizer-lhe algo que não poderia, ou não deveria, dizer. Finalmente, uma tarde ele a chamou à sua sala. Ela entrou e, perturbada, notou que o gerente fechava a porta. Mas ele se apressou a tranquilizá-la:
- Não se assuste, não vou fazer nada. Só quero...
Hesitou, como se estivesse criando coragem:
- Só quero dar uma olhada em sua conjuntiva. -E como ela arregalasse os olhos, traduziu: O seu olho. Quero ver o seu olho. Com licença.
Antes que ela pudesse dizer algo, estendeu a mão, e com a ponta do dedo, revirou a pálpebra inferior.
- Eu acho que você está anêmica -disse, por fim. É melhor você fazer uns exames...
Rabiscou algo numa folha de papel, indicou-lhe o laboratório de análises clínicas que ela deveria procurar. A moça foi lá, e três dias depois, trouxe os exames -que ele examinou num canto, subrepticiarmente, como se estivesse fazendo algo proibido. Aí seu rosto se iluminou:
- Como eu pensava -anunciou. Você está com anemia. Mas é fácil resolver isto...
Mais uma vez rabiscou algo numa folha de papel:
- Compre este remédio na farmácia. E tome uma drágea três vezes ao dia.
Ela ainda estava cheia de suspeitas. Mas ele era o gerente, não era? De modo que ela comprou o remédio, começou a tomá-lo -e umas semanas depois era outra: o cansaço de que sofria tinha melhorado, ela sentia-se mais disposta. Tomou a iniciativa de procurar o gerente e dizer isto, que agora era outra. E acabou fazendo a pergunta que tinha engasgada:
- Como é que o senhor descobriu que eu tinha anemia?
Ele sorriu, melancólico:
- Olho clínico. VAcilou um momento e prosseguiu: -Tenho de lhe confessar: eu sou médico. Mas não conte a ninguém, viu? Porque aqui... aqui eu sou o gerente, única e exclusivamente o gerente. Se descobrirem que andei atendendo você, estou frito.
Ela prometeu que guardaria o segredo. De fez em quando notava que o gerente observava as outras balconistas. Algumas não gostavam. Mas ela sabia que não era sacanagem. Olho clínico. Pura e simplesmente olho clínico.

Texto Anterior: Pernambuco autoriza o aborto em 2 hospitais
Próximo Texto: Doentes renais e Caruaru
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.