São Paulo, sexta-feira, 31 de maio de 1996
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Terra e fome

HERBERT DE SOUZA

Os dados da produção agrícola mundial mostram que há uma diminuição da oferta de alimentos, ao lado de um crescimento da demanda, que atinge proporções gigantescas. Na maioria dos países desenvolvidos já não existe fronteira agrícola por expandir, enquanto o Brasil responde por uma parcela mínima da produção mundial de grãos e detém pelo menos 180 milhões de hectares ociosos, segundo dados do Incra.
A concentração da terra no Brasil é histórica e vergonhosa. Vem do presente real aos aristocratas coloniais (as capitanias hereditárias) e culmina nas suas descendências, simbolizadas na bancada ruralista dos nossos tempos. Como nos tempos coloniais, esta é ávida detentora privilegiada das benesses do Estado.
Nossas autobatizadas "classes produtoras", salvo raras e notáveis exceções, são um vexame mundial em termos de produtividade. Enquanto elas impedem que os trabalhadores rurais possam ter acesso a milhões de hectares improdutivos, o Brasil produz apenas 70 milhões de toneladas de grãos por safra. O quinto país do mundo em extensão territorial, privilegiado pela natureza, produz escassos 4% do total mundial de 1,7 bilhão de toneladas. Sua produção é quase confundida com o erro estatístico ou as flutuações das safras mundiais de grãos.
Esses abastados (cada vez mais abastados pela dedicada bondade governamental) levam a parte do leão da política de incentivos agrícolas, não pagam os impostos devidos, sintonizam-se com os mercados internacionais em detrimento das necessidades nacionais e agora iniciam uma campanha contra os sem-terra, dizendo que eles não sabem produzir e que irão defender suas terras a bala. Como se isso já não fosse verdade desde os tempos coloniais.
Em suas revistas, exibem anúncios de armas modernas que poderão ser usadas para o esporte do tiro e a função de defesa da sagrada propriedade concedida a eles pela ação da violência expropriatória de centenas de anos. Nem sequer essa coragem têm: sempre contratam jagunços baratos ou as próprias polícias militares de suas regiões para o serviço sujo.
Em plena crise de oferta do mercado mundial (desde que se registra regularmente a safra mundial de grãos, nunca os estoques de grãos estiveram tão baixos: cobririam apenas 48 dias do consumo mundial), chegam a afirmar que, se a reforma agrária aumentar a produção, isso poderá prejudicar seus negócios porque os preços irão baixar, ao mesmo tempo que afirmam que os sem-terra não têm competência para gerir seus negócios.
Com o poder de fogo econômico de sua bancada no Congresso, eles mantêm o governo prisioneiro de uma chantagem contra as reformas, enquanto o país pode perder a oportunidade de democratizar suas terras, assentar milhões de famílias, aumentando o emprego, ampliando o mercado interno e aumentando sua competitividade em um mercado mundial de alimentos em franca expansão.
Ainda temos milhões de hectares de terra para ocupar produtivamente, temos milhões de trabalhadores para empregar e capacidade para modernizar nossa agricultura e multiplicar nossa produtividade. Temos um futuro no campo, mas hoje o que temos é um atraso secular, uma mentalidade colonial explicitada por chacinas que nos envergonham e comprometem a lisura do próprio poder público. Por tudo isso é que a democratização da terra é um imperativo urgente para a nossa própria sobrevivência.

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