São Paulo, sexta-feira, 31 de maio de 1996
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O Brasil e a Habitat 2

ERMINIA MARICATO

O desprestígio da questão urbana no Brasil é evidente, apesar da situação dramática de nossas cidades. Enchentes, desmoronamentos, crescimento de favelas, tráfego infernal, epidemias, mortandade no trânsito, infância abandonada, violência, poluição dos rios e do ar etc -os sucessivos desastres se banalizam.
Os artigos 182 e 183 da Constituição brasileira, os primeiros dedicados ao urbano na história do país, permanecem sem regulamentação há sete anos. Mas não é só. No Congresso Nacional, o projeto de lei do desenvolvimento urbano está há 13 anos sendo debatido, reformulado e engavetado, alternadamente.
A cidade ilegal das favelas, dos cortiços, dos loteamentos clandestinos e das áreas de riscos se agiganta a ponto de praticamente igualar, em números de domicílios, a cidade legal em boa parte das metrópoles. A ilegalidade na ocupação do solo caminha para ser mais regra do que exceção. Precariedade e ilegalidade andam juntas. Nos cortiços, onde predomina a locação, a lei do inquilinato em geral não é cumprida.
No entanto essa construção explosiva vem sendo ignorada pelos poderes públicos, que respondem com paliativos cercados de muita publicidade e insistem na lógica cruel de investir nas áreas valorizadas pelo mercado imobiliário privado (valorizando ainda mais os terrenos à custa dos investimentos públicos).
Essa tradição, de concentrar no espaço mercado, investimento (inclusive público) e poder regulatório, permite a construção de cenários com alta qualidade de vida, plenos de simbologia pós-moderna, que levam ao paroxismo a segregação e a desigualdade. A elite brasileira, qual avestruz, parece não se dar conta de que a má qualidade de vida decorrente da imensa agressão sócio-ambiental está desafiando também a segurança dos bairros ricos e condomínios fechados.
A terra é um nó na cidade como no campo. Nas áreas urbanas, ela não atingiu as mesmas proporções de conflito porque a ocupação vem sendo de alguma forma permitida. As favelas constituem entre 20% e 40% dos domicílios das maiores cidades. Elas testemunham que o Estado faz vistas grossas à ocupação de terras públicas, áreas de proteção ambiental, beira de córregos, encostas íngremes etc, desde que não comprometa áreas do mercado privado e forneça uma saída para o problema da moradia.
O mercado imobiliário privado não atende 50% da população e funciona em estreita simbiose com o Estado, o que torna ridículas as teses da auto-regulamentação. Na cidade, como no campo, a questão fundiária é retardatária para o processo de desenvolvimento econômico do país. Basta atentar para a importância que têm os investimentos especulativos em terra e imóveis para todos os setores da economia.
Enfrentar problemas de exclusão social urbana com essa dimensão exige o fim da demagogia e das propostas milagrosas. Não há soluções de curto prazo.
Algumas prefeituras e entidades da sociedade pavimentam um caminho para o futuro com experiências que estão merecendo destaque na conferência da ONU, Habitat 2. Elas investem no sentido de ampliar as parcerias democráticas, baratear custos, garantir maior qualidade ambiental e arquitetônica e garantir, acima de tudo, justiça social no país de maior desigualdade do planeta, segundo o próprio Banco Mundial.
A Conferência Brasileira para o Habitat 2, que reuniu quase 500 pessoas no Rio de Janeiro, nos dias 9, 10, 11 e 12 de maio, traçou diretrizes para um plano de ação que contou com a participação de setores importantes da sociedade, vindos de todas as regiões do país, por meio de entidades nacionais representativas de: arquitetos, engenheiros, geógrafos, urbanitários, universidades, Igreja Católica, movimentos de moradia, movimentos de mulheres, além de numerosas ONGs.
Entre muitas propostas aprovadas, que serão levadas a Istambul, merece destaque a que prevê a elaboração de planos de ação com a participação da sociedade, em níveis local, regional e nacional (recomendados pela ONU).
Ela pode significar a mudança de duas práticas perniciosas: do planejamento urbano burocrático e tecnocrático, que, confinado em gabinetes, desconhece a gestão da cidade real e também da velha prática do investimento aleatório em obras caras, de grande visibilidade, mas de retorno social discutível. O orçamento participativo e a parceria com entidades da sociedade, praticados atualmente em alguns municípios, já apontam nesse rumo, afirmando que a sociedade brasileira tem propostas e até experiências bem-sucedidas para levar à Habitat 2.

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