São Paulo, sábado, 1 de junho de 1996
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O ar cheira e tem cor

JOSIAS DE SOUZA

São Paulo - Não insinuarei nenhuma novidade se disser que tenho fundo desapreço por São Paulo. Contabilizo quatro seculares meses de convívio com a cidade. E ainda não consegui domá-la. Tampouco permiti que me dominasse.
Dizem-me os amigos que é preciso descobrir São Paulo. Pois quanto mais desbravo esta terra de bandeirantes, mais a deploro.
Agora mesmo estou às voltas com uma novidade de virar os miolos. Aprende-se de pequeno que o ar é inodoro e incolor. Não em São Paulo. Aqui, o ar do outono fede e tem cor.
O cheiro é de fuligem. A tonalidade, cinza. Sim, sim. Em São Paulo você vê o ar que respira. Aliás, é tolice falar em respiração. O paulistano não respira. É invadido pelo ar. Diariamente peço perdão a meus pulmões.
Menino, tinha crises hediondas de bronquite. Coisa antiga. Há tempos não me incomodava. Noutro dia, passei péssimos bocados. Em pé de guerra, meus brônquios recusavam-se a permitir a entrada do famigerado ar colorido.
Dizem-me que não perco por esperar. Julho, inverno alto, trará dias piores. E, em agosto, a secura emprestará ao ambiente contornos definitivos de inferno.
O sujeito que primeiro falou em efeito estufa deve ter amargado algumas horas debaixo do frio de São Paulo. Agora compreendo o que Caetano quis dizer em "Sampa" com aquela história da "feia fumaça que sobe, apagando as estrelas".
Como que decidida a vingar-se de minha antipatia, a cidade nega-me até mesmo o direito a um endereço. Sei que moro em São Paulo porque vejo e respiro o caos. Mas desconheço minha localização exata.
O contrato de locação do apartamento fala em Higienópolis, o bairro do presidente. A anotação na conta de luz retruca: é Pacaembu. E o porteiro do prédio, tomado de sólidas certezas, jura, calcanhares unidos: estou em Santa Cecília. Coisas de São Paulo.

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