São Paulo, terça-feira, 4 de junho de 1996
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Órfão dos novos tempos

ANDRÉ LARA RESENDE

Não ouvi os comentários de Jabor. Cheguei sábado, a tempo de acompanhar a repercussão. Impressionante. O que poderia ter sido dito para causar tal indignação? Discursos inflamados, a Lei de Imprensa volta a ser invocada; os bombeiros de plantão procuram jogar água na fogueira: houve um certo exagero, Jabor não se referira ao Congresso como um todo, mas a uma pequena minoria, e por aí afora.
Demorei um pouco até encontrar no "Jornal do Brasil" que Jabor sugerira "um Centrão de Negócios, o supermercado da política, na Câmara, pertinho da praça dos Três Poderes, quase esquina com o Palácio do Planalto".
Antes de continuar, faço um parênteses para me situar. Minha família por parte de mãe é de políticos há três gerações. Meu bisavô e meu avô, políticos profissionais tempo integral, vida integral, foram governadores de Minas. Tios e primos passaram pelo Congresso. Meu pai foi jornalista político.
Desde pequeno ouvi e convivi política. Casei cedo numa família onde a política, a vida pública e os destinos do país eram temas ubíquos. Para mim, nunca houve a menor dúvida: política era um assunto sério e apaixonante. Fazer política, poder dedicar-se à vida pública era uma honra, um privilégio ao qual só os melhores e mais preparados poderiam aspirar.
Nunca me passou pela cabeça que a opção pela política pudesse ser qualquer coisa senão o desejo sincero de refletir sobre as questões nacionais e trabalhar pelo país. Meus colegas de doutorado das universidades americanas dos anos 70, tanto os brasileiros como a absoluta maioria dos estrangeiros, tinham uma indisfarçada aspiração pela reflexão e pela atuação política.
É evidente que um mínimo de observação da natureza humana me levou cedo a perceber que os homens públicos eram presas especialmente fáceis do pecado da vaidade. Mas, também -vaidade das vaidades, tudo é vaidade-, a quem seria dado o direito de atirar a primeira pedra?
Foi preciso que eu saísse do ambiente familiar e acadêmico para ouvir uma interpretação rigorosamente cínica da opção pela vida pública e tomar conhecimento do desprezo sincero pela política e pelos políticos.
É óbvio que por muito tempo andei em ambientes onde a política era particularmente valorizada. Mas, não tenho dúvida, houve uma sensível e crescente desvalorização da política e do homem público neste fim de século. O problema não é exclusividade nossa e merece reflexão, mas tenho a impressão de que é especialmente agudo por aqui.
Volto ao Jabor, ou mais precisamente à indignação despertada pelo seu comentário. O sarcasmo no horário nobre da Globo é tão temido porque chega em terreno fértil. Se a grande maioria dos políticos está convencida de seus bons propósitos, o povo não. Para os políticos, barganhar para votar pelos projetos do governo não significa necessariamente obter vantagens pessoais, mas para os grupos ou as regiões que acreditam representar.
Mal moderno, que parece advir particularmente da política americana, todos se consideram cada vez mais representantes de pequenos grupos, regiões ou minorias, sem nenhuma responsabilidade pelo bem público na acepção pura do termo. É tempo de pensar em representar esse órfão dos novos tempos: o bem comum.

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