São Paulo, terça-feira, 4 de junho de 1996
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A lanterna na proa

PAULO MEDINA

A Associação dos Magistrados Brasileiros vê-se agredida pela pena de Roberto Campos que, em crônica desinformada, lhe atribui o reduzidíssimo papel de agente do corporativismo, atuando em zona cinzenta e manipulada por grupos de pessoas que se ocupam de futricas e brigas.
Julgar a quem não se conhece é ato em si condenável; praticando-o, deve cercar-se o julgador de um mínimo de circunspecção.
O debate público sobre questões relevantes ganha em qualidade quando se apóia em idéias, fatos e dados e perde substância ao desqualificar, sem razão fundada, os que se colocam, democraticamente, em outra perspectiva.
O ilustre parlamentar não conhece a AMB e os juízes que a dirigem, mas conhece a Constituição e deve saber o quanto investiu nas formações sociais intermediárias. Tratando-se de um crítico pertinaz do oficialismo estatal, convido-o a refletir melhor sobre a importância da vida associativa num país que é incapaz de imprimir, no campo social, uma dinâmica nova e transformadora.
A AMB quer ocupar o espaço público que se abre à participação coletiva. A cada momento, os juízes brasileiros constroem e renovam concepções e idéias que podem concorrer para o progresso social. É legítimo que dêem circularidade, peso, voz e influência às suas reflexões, expectativas e propostas.
A AMB tem visão crítica do Judiciário. Não vem a público para adoçar a realidade. A morosidade da Justiça brasileira é um dado negativo e incontrastável, que fragmenta o conceito de ordem jurídica eficaz. Esse fato incide, embora com menor extensão de efeitos, nos Estados Unidos, na Alemanha, na Itália e em outros países desenvolvidos. No Brasil, o problema é mais grave, diante das desigualdades sociais e da incapacidade do Estado de atender às prestações que lhe competem para tornar efetivos os direitos elementares da cidadania. Daí, uma carga inexcedível de violações desemboca em órgãos judiciais.
Não bastasse isso, a jurisdição e o processo são estruturas que se conectam e, nessa intercepção, o formalismo das normas processuais, a exaustiva possibilidade de recursos, incidentes e protelações amarram a demanda por anos a fio, de sorte que o vencedor da questão, não raro, é também vencido pelo decurso do tempo.
A solução para o problema da morosidade dependerá sempre de ação legislativa. Ocorre que os juízes não legislam, mas, conhecendo a realidade em que atuam, têm apresentado ao Congresso Nacional e ao Poder Executivo propostas concretas para reverter esse quadro. A AMB, nesse sentido, busca o diálogo com os parlamentares e os diversos segmentos sociais.
Urge criar um mecanismo para dar solução racional à multiplicação de demandas iguais, que congestionam o Judiciário e provocam insegurança jurídica. A dificuldade não reside em hipotético confronto entre a cúpula e a base dos órgãos de jurisdição. O problema está em construir uma estrutura que, equilibrando meios e fins, revele-se eficaz no desobstruir a Justiça, não obstruindo, entretanto, a tendência evolutiva do Direito, que é ciência a serviço da vida e não dogmática canonizável.
O episódio narrado pelo deputado Roberto Campos, ocorrido há 30 anos e agora lembrado para agredir o Judiciário, é tão lamentável quanto emblemático do obscurantismo daquele tempo. Apelo que, de qualquer modo, pretenda resgatar esse passado é repudiado pela consciência democrática do país. O articulista deveria colocar a lanterna na proa...
A AMB está aberta ao debate, desde que se faça de forma construtiva. O que é inaceitável é que um homem público de envergadura, como o deputado Roberto Campos, possa conviver com a incerteza sobre a dignidade da magistratura de seu país. Fará um gesto patriótico apontando os indignos para que prestem contas à Justiça.
A magistratura exige respeito!

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