São Paulo, sexta-feira, 7 de junho de 1996
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Justiça Militar e impunidade

JOSÉ DIRCEU

É compreensível a exultação do presidente da Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais com o substitutivo do Senado ao projeto que transfere para a Justiça comum a competência de julgar crimes praticados por policiais militares. Em artigo publicado nesta seção da Folha, dia 20/5, o juiz-auditor Getúlio Corrêa manifesta solitária satisfação face ao substitutivo do Senado, em oposição ao generalizado repúdio dos mais diversos segmentos da sociedade, que esperavam a aprovação do projeto original sobre a matéria, o 899/95, de autoria do deputado e jurista Hélio Bicudo.
Não surpreende que o elogio público ao "mostrengo" produzido pelo Senado advenha justamente do único setor interessado na manutenção do status quo. É que só tem a perder com o projeto Hélio Bicudo aquela parcela da Justiça Militar que prefere ver inalterada sua estrutura a rever uma instituição que se transformou em impedimento à realização da justiça. A transferência dos julgamentos dos crimes de militares para a Justiça comum reduziria funções atuais da Justiça Militar dos Estados, circunscrevendo sua competência aos crimes militares. É de se reconhecer, contudo, que mesmo na Justiça Militar existem -e não são poucos- os que acreditam que o princípio constitucional de que todos são iguais perante a lei deve prevalecer sobre os interesses particulares e corporativos.
O foro privilegiado dos PMs, obra e herança maldita do regime de arbítrio, tem sido, inegavelmente, o principal propulsor da impunidade dos crimes cometidos por maus policiais. Há uma relação dinâmica entre causa e consequência, na qual os exemplos da ausência de coerção estimulam a repetição das mesmas práticas. Assim, não há como inibir a extrema violência policial e o aviltamento da cidadania sem garantir que a Justiça seja igual para todos. Ou aceitaremos passivos a sucessão de massacres, no campo e na cidade.
A manobra engendrada no Senado, rejeitando primeiro o projeto 899/95 para depois emendar o 102/93, de autoria do deputado Genebaldo Corrêa (que renunciou para não ser cassado por corrupção), visou justamente dificultar o posterior restabelecimento, pela Câmara, dos dispositivos do projeto original destinados ao efetivo combate à impunidade daqueles que deveriam proteger, e não violar, os direitos humanos. Tal procedimento constitui-se num flagrante desrespeito à vontade da Câmara dos Deputados, uma vez que era o projeto Bicudo o texto realmente em discussão -tanto é que foi este, e não o projeto Genebaldo, o objeto de deliberação da Câmara em janeiro passado.
O substitutivo aprovado pelo Senado limita o alcance da Justiça comum aos crimes dolosos contra a vida. Ao contrário do que alega o doutor Corrêa, não há isenção na verificação do dolo nos crimes de homicídios, uma vez que essas decisões são tomadas a partir dos Inquéritos Policiais Militares, feitos pelas próprias instituições a que pertencem os acusados e, portanto, sujeitas a fortes pressões internas, que as Procuradorias da Justiça Militar conhecem tão bem.
Outros crimes cujas práticas são comuns entre maus policiais, como tortura, lesão corporal e extorsão, continuam em foro privilegiado. A lei 4.898/65, que prevê a punição de abusos de autoridade, não abrange os referidos crimes. Pelo contrário, das 2.571 ações com base nessa norma, que chegaram ao Superior Tribunal de Justiça durante este ano, apenas 165 foram contra policiais. A análise da jurisprudência dessas poucas ações indicará que a maioria delas é rejeitada por "inépcia".
O Brasil de 1996 não aceita mais ser apontado por toda a comunidade internacional como o segundo país no "ranking" de ofensas aos direitos humanos, tendo a agravante de ser o próprio Estado, por meio de alguns de seus agentes abrigados sob o manto da impunidade, o pior violador.

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