São Paulo, sexta-feira, 7 de junho de 1996
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A face oculta da Habitat 2

RICARDO ABRAMOVAY; IGNACY SACHS

Tudo se passa como se as periferias das cidades fossem o purgatório a caminho da verdadeira redenção, a urbana
RICARDO ABRAMOVAY
e IGNACY SACHS
Cúpula das cidades: mais da metade dos habitantes do planeta está excluída do encontro mundial sobre assentamentos humanos, que acontece em Istambul (Turquia). Ou, para expressá-lo numa versão otimista: está presente não pelo que é, mas pelo que virá a ser, não pela efemeridade de sua existência atual, mas pela consistência presumida de seu futuro inelutável. É apenas na qualidade de migrantes potenciais que os 55% da população mundial que vivem hoje no campo integram as preocupações da conferência de Istambul.
Os documentos até agora conhecidos e o espírito geral da Habitat 2 não escamoteiam os problemas das cidades: eles corroboram entretanto com um horizonte cultural, com uma escolha de civilização que faz das cidades o único espaço social possível de desenvolvimento do homem. Portanto, nada mais lógico do que associar como termos sinônimos assentamentos humanos e cidades.
Não se trata de negar o efeito dinamizador que as cidades exercem sobre o conjunto da vida social, nem muito menos de preconizar qualquer forma de fixação do homem ao campo ou de fechamento do meio rural com relação ao mundo urbano.
Mas o peso atual dos assentamentos humanos no campo é tão grande que seria necessário, no mínimo, que a Habitat 2 examinasse seriamente a questão: será que o meio rural não pode ser um espaço geográfico de enriquecimento social, material e cultural para uma parte importante da população que ele hoje habita? Será que o campo deve ser concebido apenas como espaço transitório, útil, eventualmente, para evitar o "inchaço" das cidades, mas incapaz de se constituir num lugar de verdadeira valorização da vida?
É verdade que a população urbana mundial cresce a um ritmo três vezes mais acelerado que a do campo, onde vivem hoje 3,1 bilhões de pessoas. Dentro de dez anos, metade da população mundial viverá fora do campo e, em 2025, vão concentrar-se nas cidades -caso persistam as tendências atuais- 61% dos habitantes do globo.
O meio rural começará então a sofrer um decrescimento demográfico absoluto, mas nele viverão nada menos que 3,2 bilhões de pessoas, sobretudo na Ásia (2,2 bilhões frente ao 1,6 bilhão atual) e na África (692 milhões diante dos 469 milhões de hoje). Contrariamente a essas duas regiões, o declínio absoluto da população rural na América Latina e no Caribe já teve início em 1985, e, dos 124 milhões de habitantes rurais de hoje, o continente passará a 108 milhões em 30 anos.
Um dos principais vícios do debate atual é a confusão entre urbanização e desruralização: a maior parte dos habitantes das megalópoles dos países em desenvolvimento não possui as condições mínimas daquilo que se pode chamar de vida urbana. A partir do êxodo rural, vai-se aglomerando numa espécie de pré-cidade geográfica e social que reúne habitações precárias e perigosas, insegurança no acesso ao trabalho e à renda e dificuldade de obtenção de serviços básicos.
Mas, como as condições de vida no campo tendem a ser ainda mais precárias, tudo se passa como se as periferias das cidades, as favelas, as concentrações de bóias-frias fossem o purgatório a caminho da verdadeira redenção, a urbana.
Ora, os pobres rurais não estão condenados à escolha destrutiva entre a miséria no campo e a marginalização urbana. No meio rural, poderiam desempenhar funções produtivas muito mais úteis à vida social do que aquelas às quais têm acesso nas cidades.
Não se trata de um voto piedoso movido por nostalgia bucólica. O combate à pobreza rural vai depender fundamentalmente da capacidade que terá o modelo de crescimento agrícola de incorporar e valorizar a atividade econômica das populações que hoje vivem em situação muito precária e para as quais as cidades dificilmente representariam um caminho em que seu trabalho pudesse ter utilidade social maior que no campo. Em outras palavras, o desafio é transformar as necessidades alimentares presentes em trunfo para o desenvolvimento.
Utopia? Talvez. Mas é importante assinalar que os principais centros de pesquisas agronômicas do mundo estão elaborando e difundindo modelos tecnológicos mais intensivos em conhecimento do que em capital e, sobretudo, mais adaptados aos meios naturais em que vivem os pobres do campo.
Os pesquisadores que trabalham nessa direção chegam a falar em uma revolução duplamente verde, que amplie as capacidades produtivas, mas que valorize os ambientes sociais e naturais que até aqui foram marginalizados pelos padrões dominantes da pesquisa agronômica. Existem cada vez menos razões técnicas que possam impedir que os pobres do campo tenham no aumento de suas capacidades produtivas o elemento chave de sua emancipação social.
Seria lamentável que essas conquistas técnicas e organizacionais não fossem colocadas a serviço da diversificação dos espaços geográficos de luta contra a pobreza e de valorização da pluralidade dos assentamentos humanos. Infelizmente, entretanto, essa é uma ameaça que paira sobre a Habitat 2.

Ricardo Abramovay, 43, é professor do Departamento de Economia da Faculdade de Economia e Administração da USP (Universidade de São Paulo).

Ignacy Sachs, 65, é professor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris, França).
Os autores são consultores da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) para a Conferência Mundial sobre Assentamentos Humanos (Habitat 2).

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