São Paulo, sábado, 8 de junho de 1996
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Paternidade irresponsável

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O comentário anterior, sobre a Lei do Planejamento Familiar, despertou críticas, que me levam a tratar da paternidade irresponsável. Já se viu que a paternidade responsável respeita a dignidade da pessoa humana e corresponde à possibilidade efetiva de manutenção e educação da família, asseguradas pelos pais e pelo Estado.
Embora se trate de livre decisão do casal, a procriação não é nem pode ser condicionada pelas condições econômicas das pessoas -como querem os que se queixam da proliferação exagerada dos desvalidos-, sob pena de discriminar os mais pobres, pelo simples fato de serem pobres, o que é inaceitável.
A irresponsável paternidade mostra-se sob várias formas. Uma delas é a irresponsabilidade privada, da relação sexual assumida tão despreocupadamente que dispensa métodos anticoncepcionais, agravada pelo sumiço do homem quando sabe da gravidez. Há uma forma de irresponsabilidade pública. É a que não assegura a todos os cidadãos o conhecimento mínimo dos recursos educacionais e científicos destinados ao planejamento familiar. As mulheres são as principais vítimas do descumprimento desse dever do Estado, atingidas pela ignorância, que as impede de adotar métodos anticoncepcionais eficazes.
Pode-se dizer que os principais elementos a serem considerados para definir se uma certa paternidade é responsável ou irresponsável estão no artigo 227 da Constituição. Ali se lê que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Sim, o artigo 227 parece sonho de uma noite de verão, irrealizável e inatingível num país heterogêneo como o nosso. Pode-se, porém, tomar o artigo 227 como norma programática, como um programa de vida futura, no qual esteja satisfeito o objetivo ideal nele contido.
Lazer e profissionalização são bens de vida situados no pólo oposto da adolescência e da infância existente nas ruas de São Paulo. Não tendo lazer nem profissão, muitas dessas jovens criaturas descambam para o crime. Estimulam vozes aflitas na sociedade que desejam sua punição severa, vozes reticentes, porém, quando se trate de cooperar com o Estado, para integral cumprimento dos deveres previstos no artigo 227.
Há o fato concreto de que os mais pobres tendem a ter prole mais numerosa. Há o fato concreto de que entre as mulheres de pior situação econômica encontram-se mais filhos de homens não indicados no registro de nascimento. Aliás, admite-se que sejam mais de 100 mil (não há estatística confiável a respeito) as crianças que nem sequer foram registradas pela mãe. Todavia, o problema não é só delas. Tomando conhecimento do problema e se recusando a participar de suas soluções, a sociedade também assume atitude irresponsável quando se limita a criticar os que "fizeram o filho" sem poder.
O provérbio antigo é "Quem pariu Mateus que o embale". De tão antigo, terminou superado. Todos temos responsabilidade de educar, informar, esclarecer, prevenir e reparar os efeitos da paternidade daqueles que, tendo feito filhos, não tenham condições de cuidar deles. Até como meio de garantir a paz social. Até como autodefesa.

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