São Paulo, segunda-feira, 10 de junho de 1996
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Estranho e sinistro conluio

JOSÉ MARTINS FILHO

Tem impressionado fortemente a opinião pública esclarecida e, em particular, a coletividade universitária o discurso feroz que se pratica, nos meios tecnocráticos do momento, contra a universidade pública e gratuita. Nem tão recente é a novidade: veio no bojo da onda privativista que se receitou para o Terceiro Mundo e, no Brasil, data dos programas inesquecíveis do governo Collor, cujo resultado se conhece.
Num conluio sinistro entre espíritos contabilistas e mentes desinformadas -tão mais alarmante quando se pensa que tais entidades não raro detêm o poder de decidir-, sugere-se de tudo: que se passe a cobrar mensalidades dos alunos, tal como acontece nas universidades privadas, de maneira a livrar o Estado do peso desse financiamento incômodo; que ao menos se reserve nessas universidades cotas fixas para os pobres (e por que não também para os negros e para os índios?); que elas tratem de se manter com recursos da iniciativa privada, por meio da venda de seus serviços e de suas pesquisas, tal como acontece (supõem) nos Estados Unidos.
Primeiro, é uma inverdade que nos Estados Unidos ou onde quer que seja as universidades públicas sejam auto-suficientes ao ponto de dispensar a participação do Estado. Que possam sobreviver da cobrança de anuidades, então, é uma utopia. Mesmo uma instituição privada de primeiríssima linha como o MIT (Instituto Tecnológico de Massachusetts) tem apenas 17% de seus recursos cobertos por anuidades escolares. O restante vem de operações financeiras e de doações da sociedade civil -tradição que, no Brasil, não existe absolutamente.
Os cálculos apontam que, se fossem cobradas anuidades dos alunos das universidades públicas brasileiras, os recursos daí provenientes não cobririam, seguramente, mais que 15% de suas necessidades orçamentárias. Escapa aos defensores desse argumento simplista o fato de que, além de serem instituições de ensino, essas universidades são também centros de pesquisa (com milhares de importantes laboratórios pelo país e, particularmente, no Estado de São Paulo) e que, na maioria dos casos, constituem hoje a última rede de segurança da dilacerada saúde pública (um dever do Estado!), com suas unidades hospitalares, cuja vocação original era a de serem simples hospitais-escolas.
Então, é o caso de perguntar-se: quem pagará pela manutenção desses hospitais, pela geração de conhecimento novo, pela formação de quadros especializados, pela realização das pesquisas, sem as quais o país voltaria ao grau de dependência científica e tecnológica do século 19, pela produção de cultura em todos os níveis que as universidades repassam à sociedade? O que desejam esses senhores? Que se desativem as orquestras, os laboratórios e os hospitais? Ou que, absurdamente, os estudantes paguem também por isso?
Por fim, há o argumento sentencioso de que as universidades públicas servem aos ricos e discriminam os pobres. É uma falácia. Se é verdade que os muitos pobres raramente têm acesso às melhores instituições, é inteiramente falso que a maioria de seus alunos seja composta de ricos. Pesquisa feita pela Unicamp mostra que não mais de 18,7% deles são oriundos de pais inequivocamente ricos, 46,17% vêm da classe média e 37,1% provêm de famílias com renda entre dois e 15 salários mínimos. Um indicador importante é que, da totalidade desses ingressantes, quase 40% vêm da escola pública.
De resto, escapa aos privativistas a verdadeira razão pela qual os pobres não entram em proporção mais significativa nas universidades públicas. O dever dessas instituições é selecionar estudantes segundo sua aptidão intelectual, sejam eles ricos, pobres ou remediados. Atirar sobre elas a culpa pela exclusão dos menos aptos (que calha frequentemente de serem os pobres) é escamotear o significado da falência do ensino público de primeiro e segundo graus, que deveria justamente qualificá-los para o ensino superior.
Aqueles que assistiram à derrocada dos níveis básico e secundário de ensino nos últimos 30 anos serão capazes de compreender a apreensão, o susto e a perplexidade da comunidade universitária em face do discurso dominante em certas camadas do poder constituído, de uns tempos para cá. A interrogação é: terá a universidade pública o mesmo destino? Cabe à sociedade organizada, consciente e duradoura (o poder é transitório) impedir que tal crime se consuma.

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