São Paulo, segunda-feira, 10 de junho de 1996
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Agressão reacionária

ERNANDO UCHOA LIMA

Irritado com as críticas que a Ordem dos Advogados do Brasil faz ao instituto da súmula vinculante -e o faz invocando sólida doutrina jurídica-, o deputado Roberto Campos acusou-a, em artigo recente na Folha, de estar "a serviço de corporativismo danoso" e de "viver numa zona cinza", sem, no entanto, esclarecer exatamente o que isso significa.
O deputado deixa claro seu desapreço por entidades representativas, componentes fundamentais da democracia. Supõe que "pessoas sérias" desprezam essas organizações, que seriam "manipuladas por grupos que fazem da representação uma profissão".
Engana-se. No caso da OAB, fizeram parte de sua direção, ao longo de sua história, invariavelmente, a serviço da democracia, da liberdade e dos direitos da pessoa humana, as mais eminentes figuras do pensamento e das letras jurídicas. Exemplo recente é o atual presidente do Supremo Tribunal Federal, o ínclito ministro Sepúlveda Pertence, que já honrou e dignificou a vice-presidência da Ordem. Ao contrário do que imagina o deputado, presidir uma entidade como a OAB requer coragem, idealismo, amor à causa e espírito de renúncia.
Não há surpresa na investida do deputado. Roberto Campos e OAB estiveram sempre em trincheiras opostas, em praticamente todos os acontecimentos da vida pública brasileira nas três últimas décadas.
O ilustre deputado permanece como um dos mais destacados líderes do reacionarismo em nosso país. Não nos causa, pois, espécie que se apresente como defensor ardoroso de mais um instrumento que a OAB considera pouco ou nada democrático -no caso específico, a súmula vinculante.
Antes de mais nada, convém defini-la para o leitor leigo: a decisão de um tribunal superior, em determinado assunto, torna-se obrigatória para todos os casos assemelhados que se apresentem, dali por diante, nas instâncias inferiores.
A súmula vinculante surge com uma boa intenção: aliviar a pauta dos tribunais, fazendo com que se abstenham de julgar questões a respeito das quais já haja deliberação do STF. O efeito prático, porém, é grave: além de usurpar funções do Poder Legislativo, consagradas na Constituição, estabelece a perda de autonomia dos juízes, tornando-os meros aplicadores das súmulas dos tribunais superiores e estimulando-os à inércia.
Por mais semelhança que um caso possa ter com o outro, há nuances e particularidades intransferíveis e é exatamente aí que reside o espaço de livre convencimento e independência do juiz, cujo limite é a lei.
A falaciosa argumentação do parlamentar é quanto à funcionalidade processual da súmula. É, em regra, o eixo da argumentação autoritária, que vê na democracia, no entrechoque dos pontos de vista, na pluralidade de idéias, algo disfuncional e ruidoso, que contrasta com a ordem aparente dos regimes de força -a paz dos cemitérios.
Se a súmula vinculante tem o objetivo de desobstruir os tribunais, mais eficaz será atacar as causas desse congestionamento, para o qual concorre o Estado, com o abusivo número de recursos em que é réu, mesmo quando a pacífica jurisprudência lhe é adversa.
Para resolver esta situação, não é preciso mexer na Constituição. A legislação ordinária é suficiente. A crise do Judiciário, que está na raiz da crise social brasileira, é fruto do descaso das elites dirigentes. Falta vontade política para reequipá-lo, reestruturá-lo, fazer com que chegue mais rápido a toda a população. Este é o ponto central, que a súmula vinculante nem sequer tangencia.
A Carta Magna do país, que o deputado Roberto Campos desrespeitosamente chama de "Constituição-besteirol" (não obstante ter sido um de seus autores, visto que, na qualidade de constituinte, assinou-a em 1988), nada tem com isso. Parece-nos injusto vincular a um documento inacabado -e inacabado por falta de votação das leis complementares- todos os males que afligem o país.
Este, sim, é o grande besteirol vinculante em curso, que encontra no conservadorismo do eminente legislador um singular e obstinado adepto.

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