São Paulo, sábado, 15 de junho de 1996
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Limite da magistratura

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Reconheço serem muitas as vozes insistentes em limitar as funções da magistratura a apenas "dizer a lei" no caso concreto, ou, ainda, a órgão encarregado de operar ou atuar o direito, alheio às partes e ao Estado. Discordo delas.
Nos tempos do liberalismo, em que o Estado tinha um mínimo de intervenção, predominante o individualismo mais arraigado, era compreensível a referência à magistratura não-política ou distante do dia-a-dia da vida.
Vivemos outros tempos. Dois elementos apontam no sentido oposto. No século passado e até a metade deste, as leis eram poucas, os fatos jurídicos vinham sedimentados por decênios e até milênios de aplicação uniforme.
É típico desse período que as Ordenações Portuguesas somente tenham sido revogadas em 1917, quase um século depois da Independência e muitos séculos depois de sua edição. Desde então, as leis complementares ao Código Civil, cuja vigência começou naquele ano, têm disposições muito mais numerosas que as ainda vigentes no corpo codificado.
O juiz lida, hoje, com milhões de dispositivos em vigor e em transformação constante. Decidindo a respeito deles, permite ou nega sua integração na vida sóciopolítica da nação, seja quanto aos editados pelo Executivo, ou pelo Legislativo. Ora, sempre se soube que a divisão dos poderes não era absoluta, pois o Judiciário legisla, o Legislativo administra e o Executivo julga.
Nos tempos correntes, o entrelaçamento atuante dos três poderes está cada vez mais acentuado. Nesse quadro, a magistratura tem o papel de atenta participante do governo. Atuando como Legislativo e como Executivo, injeta vida ou mata as iniciativas dos outros Poderes. Curiosamente, o exercício dessas funções impôs maior cuidado aos juízes, na dosagem da intromissão possível, que tem, contudo, mostrado distorções inaceitáveis, por excesso ou por escassez.
Nesse período de transição, há coisas do Judiciário difíceis de compreender ou aplaudir. Dou dois exemplos. Os tribunais superiores criam continuamente obstáculos ao julgamento de recursos, inventando razões processuais -estranhas ao mérito das questões e, portanto, à decisão justa- para negar o cabimento deles. Justificam as muitas queixas de que as acrobacias processuais só se destinam a evitar mais trabalho para os magistrados.
No outro lado da moeda se contata que juízes e tribunais vivem queixando-se da dificuldade de falta de verbas, por culpa do Legislativo e, principalmente, do Executivo, as quais prejudicam, segundo dizem, o funcionamento da máquina judicial.
Pois bem: esses mesmos tribunais beneficiam a Fazenda Pública quando esta perde prazos ou é atingida por decadência de direito ou prescrição da ação. Alegam que a Fazenda Pública não pode ser prejudicada pelo mau funcionamento da máquina judicial. Mau funcionamento que eles atribuem à mesmíssima Fazenda, que outra não é senão o braço do mesmo governo integrado pela Magistratura. Ou seja, faz um jogo de compadres contra os entes privados, que não influenciam o funcionamento da máquina judiciária.
O Judiciário pratica, em cada decisão, um ato de governo. Esse ato não pode, contudo, negar a prestação da Justiça ou, pior, beneficiar outros ramos do mesmo governo, formando com eles uma "societas" contra sua clientela. Negando a prestação ou protegendo seus parceiros de governo, fica sujeito a críticas, das quais se queixa com frequência. Mas, nessa parte, se queixa sem razão.

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