São Paulo, domingo, 14 de julho de 1996
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"Atravesso esta existência no pior dos piores países possíveis e imagináveis"

Porchat
Capital Federal, 15 de dezembro de 1893

Saúdo-te -desejando-te o que mais me falta atualmente, a paz carinhosa e alentadora da família. Li a tua carta, como leio todas as cartas que me chegam de S. Paulo, com a imensa tristeza dos que escutam a voz dos amigos ausentes, sem a esperança de os tornar a ver. Além disto a tua carta transuda a melancolia que devem realmente sentir os bons, na fase desastrosa que atravessamos. Pelo menos sobre mim a feição última dos acontecimentos refletiu-se da pior maneira. Não que o manifesto Saldanha me fizesse desanimar a mim, republicano feito nas asperezas da propaganda -mas sim por que a rosnadura do nostálgico molosso, que ora mostra os colmilhos perigosos, ladrando à República, faz-me conjeturar num prolongamento da luta, inevitavelmente desastrosa para a nossa terra.
O que haverá pelas bandas do futuro? Esta interrogação, perene no meu espírito, já se me tornou em perigosa obsessão; todos os meus atos, sinto-os em função dela, de sorte que vivo num constante oscilar -do desânimo maior às maiores esperanças. O que nos reserva o futuro? A nossa grande Pátria cindida pelas paixões decompor-se-á em minúsculos Estados? Resistirá, forte, amparada pela República, à sinistra conspiração, dos velhos devassos imperiais, emudecidos a 15 de novembro e rugidores hoje? O que traduz a feição dúbia das potências estrangeiras e, sobre todas, a dessa perene inimiga do gênero humano -a Inglaterra- que realiza o fato assombroso de criar dentro de uma alma tão estreita os maiores homens do mundo, os Newtons, os Byrons e os Parnel(l)s?
Não vês a maneira pela qual as gentes pseudocivilizadas tratam os selvagens de todo o mundo? A França, a Inglaterra, a Alemanha, exercendo miseravelmente o banditismo mais torpe roubando pátrias, saqueando os lares tranquilos dos "bárbaros" na África e na Ásia. E ultimamente a Espanha, tão ciumenta da própria liberdade e tão cavalheira para defendê-la, investindo covardemente contra os Cabilas seminus e incultos? Suporão esses países gastos e fúteis, com a sua civilização ridícula de bulevares repletos de boêmios infecundos e desprezíveis, que somos nós uma variedade qualquer dos bôeres ou dos Cabilas? Todas estas interrogações, meu amigo, acodem-me de chofre e com tumulto ao meu espírito. Tenho-as sempre, vivíssimas e insolúveis. Nunca senti tão violento como hoje o que dantes era para mim um sentimento mau, traduzido por uma palavra que eu entendia não dever existir na língua humana -o nativismo. Tenho-o hoje, exageradamente. O estrangeiro, o estrangeiro que se diz civilizado -considero-o inimigo. É o inimigo pior e covarde, de luvas de pelica e sorridente, que nos mata e ao mesmo tempo avilta-nos. E eu pressinto que ele tem hoje o olhar cobiçoso sobre a nossa terra. O século 19 porém não testemunhará o desastre do aniquilamento de uma nacionalidade. As usinas do Krupp, Schneider, Bange e tantos outros (...) do progresso não impedirão a majestosa evolução do espírito democrático confiado à política americana.
Já vai longa esta carta; escrevi rapidamente, de propósito, como que para "apanhar em flagrante" a minha maneira de sentir. Encarrego-te da missão de abraçar a todos os bons companheiros daí. Recomenda-me a toda a família e escreve sempre ao
Amº seguro

Euclides da Cunha

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