São Paulo, domingo, 14 de julho de 1996
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Rio, 8 de agosto de 1909

Otaviano.

Respondo a tua prezada carta de 7 -agradecendo-te as palavras animadoras- embora recordes, melancolicamente, que já estamos na reserva. Para você, elegante e faceiro, o caso é desastroso; para mim, desarranjado e revolto, é uma (...). Estou na reserva desde os vinte anos, quadra em que me assaltou o pessimismo incurável com que vou atravessando esta existência no pior dos piores países possíveis e imagináveis. Talvez não acredites: ando nas ruas desta aldeia de avenidas, com as nostalgias de um inglês "smart" perdido numa enorme aringa da África Central. Nostalgia e revolta: tu não imaginas como andam propícios os tempos a todas as mediocridades. Estamos no período hilariante dos grandes homens-pulhas, dos Pachecos empavesados e dos Acácios triunfantes. Nunca se berrou tão convictamente tanta asneira sob o sol! Na Câmara e no Largo de S. Francisco, os "mirabeaux" andam aos pontapés. Em cada esquina um O'Connel; em cada degrau de secretaria um salvador das instituições e da Pátria. Da noite para o dia surgem não sei quantos imortais... É asfixiante! A atmosfera moral é magnífica para batráquios. Mas apaga o homem. Já (...) vezes penso em romper a fundo com tudo isto: dois ou três artigos desabalados e rijos -tomando a frente de toda essa sujeira (...) canalha com o meu rubro desassombro de caboclo "sans peur et sans reproche". Mas contenho-me. Lembro-me do único Homem que reúne o resto das esperanças do país, e ao lado do qual ainda estou, porque ele ainda não me dispensou. Mas no dia em que não houver mais trabalhos para o cartógrafo da Secretaria do Exterior... que desabafo! Como eu açularei nervosamente no rastro destas raposas insaciáveis a matilha feroz dos meus adjetivos implacáveis!
Ponto, porém. Deves estar espantadíssimo! Absolutamente não contavas com esta tirada do ex-rebelde da Praia Vermelha... Nem eu. Escapou-me no final de um artigo de fundo, hipócrita, como a maioria dos que por aí se imprimem. E como a tua carta coincidiu com a leitura dele -apanhaste uns restos de rajada.
Tornando ao assunto principal da tua carta: a Saninha diz que combinou com o velho em buscá-lo nos princípios de setembro, depois que ele ordenar as coisas na fazenda. Diz também que ele prefere a ida dela à do Arnaldo. Mas pela tua carta deduzo que ele quer vir já. Se assim for manda-me dizer logo, para providenciarmos.
Ontem estive com o Comendador Chaves, que se mostrou muito interessado pela saúde do meu pai, a quem vai escrever. Também o Dr. Gomes e Érico mandam-lhe muitas recomendações, desejando vê-lo, breve, aqui.
Já iniciei o meu curso de lógica no ex-Ginásio Nacional (hoje Pedro 2º graças a um lance de histeria republicana). Curso principiado no meio do ano -serei obrigado a sapecar a matéria para preencher o programa. Mas levo-o por diante numa grande convicção pedagógica. Ao menos direi aos meus alunos a simples e límpida lógica de Stuart Mill, ao invés de transcendentais tolices metafísicas. Diz-me a consciência que serei mais útil do que o funambulesco filósofo (diz-se ele o único filósofo brasileiro!) da "Finalidade do Mundo", que há 25 anos escreveu um livro que ninguém lê e estuda uma lógica que ninguém entende.
Muitas lembranças ao Dr. Deolindo. Saudades à Adélia e sobrinhos. Escrevo-te deitado -não por doença, mas porque é domingo e como não posso ainda andar muito, aproveito a ocasião para pagar o meu silêncio anterior. Daí os exageros desta carta, a que darás todos os devidos descontos.
Abraça-te cordialmente o

Euclides

(À margem) A Saninha disse-me que o Sr. Ellis aí contou uma porção de coisas (que lhe revelara grandes dificuldades na vida etc.). Embora eu já esteja fatigado de repelir as torpezas desta pobre humanidade -não tenho ânimo em mim que não declare: o Sr. Ellis mentiu. E peço que não dês ouvidos a tais indivíduos com os quais falo de ano em ano, e fortuitamente.

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