São Paulo, domingo, 14 de julho de 1996
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O canto de sereia da globalização

ALAIN TOURAINE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Falamos de mundialização ou de globalização como se ambos os termos tivessem o mesmo sentido; ora, eles são tão diferentes quanto o são uma descrição e uma ideologia. Não há dúvida de que a economia se mundializa, as grandes empresas traçam estratégias mundiais e os mesmíssimos produtos materiais e imateriais espalham-se pelos cinco continentes. Também não há dúvida de que os circuitos financeiros permitem a cada dia movimentar US$ 1,4 trilhão no globo e de que as pessoas de todos os países comunicam-se pela Internet.
Mas do mesmo modo que a criação de uma sociedade informatizada -uma nova civilização técnica, diria com mais acerto Georges Friedmann- é evidente e de crucial importância para todos nós, assim também é arbitrário depreender daí que surge hoje uma sociedade global ou mesmo, como disse há tempos McLuhan, uma aldeia global.
Uma coisa é afirmar o triunfo da sociedade de mercado; outra, totalmente diferente, é dizer que a sociedade deve ser regulada como um mercado e, portanto, ser liberal, ou seja, reduzir tanto quanto possível as intervenções centralizadas e voluntaristas do Estado, dos monopólios, da igreja. De fato, somos submetidos a uma intensa campanha ideológica que tenta nos convencer de nosso ingresso na sociedade global e da irrefreável tendência do planeta em tornar-se uma imensa zona de livre comércio.
É compreensível que essa ideologia difunda-se a partir dos Estados Unidos, pois ela lhes favorece a hegemonia: soa mais elegante dizer que a Coca-Cola, a CNN ou a Microsoft são empresas globais antes de serem norte-americanas, o que entretanto elas não deixam de ser. Menos compreensível é que o resto do mundo aceite tal descrição ideológica.
Já no início do século falava-se de economia global ou de imperialismo, ou seja, do triunfo da economia financeira, e no entanto, alguns anos mais tarde, o planeta se viu sacudido por guerras internacionais e revoluções que eclodiram nas nações e reforçaram o papel dos Estados nacionais. Do mesmo modo, amanhã veremos dissipar-se a ilusão de um mundo globalizado e presenciaremos a ascensão do império chinês, assim como presenciamos a ascensão do poderio japonês, antes que uma grave crise financeira reduzisse durante alguns anos as ambições das empresas nipônicas.
Parece-me que já notamos claramente a volta da política, a desforra dos Estados nacionais ou supranacionais. Por que certos países europeus como a Alemanha e a França aceitam os fardos do sacrifício econômico para erigir a moeda européia, se não para quebrar o monopólio do dólar e orientar o mundo rumo a uma organização tripolar -América do Norte, Europa Ocidental e Japão, ao invés de rumo a uma globalização irrealista? E se o Reino Unido não deseja integrar-se a uma Europa política, é porque ele não quer pertencer a um bloco diverso do encabeçado pelos Estados Unidos.
Os países latino-americanos, México à frente, que se revelaram fascinados pela idéia livre-cambista da globalização pagam um preço elevado pela crença ilusória de que um país é capaz de desenvolver-se sem sistema e vontade política fortes. Mesmo o Chile, enleado pelo livre-cambismo, privilegiou o capitalismo financeiro em detrimento do capitalismo industrial, mas hoje desconfia de suas opções e busca reaproximar-se do Mercosul, cujo interesse é preparar para o Cone Sul uma solução do tipo europeu, isto é, uma união econômica capaz de evoluir rumo à criação de um ator político supranacional.
O modelo tripolar é de longe mais verossímil que o da globalização. Ele diferencia pólos, atores intermediários e zonas marginais. Os pólos visíveis no momento são os Estados Unidos, a Europa Ocidental e o Japão, mas poderosos atores intermediários podem atuar entre dois pólos. Tal será o caso do Mercosul, entre os Estados Unidos e a Europa, e da Índia, entre a Ásia e a Europa.
Ora, podemos nos perguntar se o Japão não se converterá num ator intermediário entre os Estados Unidos e uma China que em meio século será talvez o pólo magnético dos países asiáticos, a um só tempo liberais economicamente, autoritários politicamente e nacionalistas culturalmente. As zonas marginais são as mais instáveis: é o caso das regiões africanas assoladas pelo subdesenvolvimento, de grande parte do mundo árabe e talvez (ou sobretudo) do mundo soviético, que não é mais capaz de formar um pólo como durante a Guerra Fria.
O pólo não é somente um foco de desenvolvimento econômico; é necessariamente também um poder político de escopo internacional e o centro de uma cultura. Eis por que o Japão atuou como um pólo ao longo de 50 anos, o que não pode ser dito com tanta clareza da Europa, por certo economicamente forte, mas politicamente fraca e culturalmente cada vez mais parasitária dos Estados Unidos. O que acabo de dizer dos pólos pode ser estendido à totalidade dos países. Somente os capazes de aliar uma atividade econômica, um projeto político e uma cultura estarão aptos a tornar-se importantes atores do desenvolvimento.
Um mundo tripolarizado carrega em si muitas ameaças de conflitos abertos entre os pólos. A atual "pax americana" tem suas vantagens, como as tinham a Guerra Fria e o equilíbrio do terror, mas não há razão para pensar que o mundo tripolarizado será incapaz de arbitrar seus conflitos internos.
É bem verdade, porém, que ele partilhará da fragilidade do sistema das grandes potências européias do século 19. Em compensação, o atual sistema globalizado, sob hegemonia americana, tem como contrapartida o fortalecimento dos integrismos que se congregam em nome da defesa de uma sociedade ou de uma cultura que se sente ameaçada pela globalização. Conflitos entre os três vértices do triângulo ou embates entre o centro e a periferia constituem as duas principais ameaças à paz, cada uma delas absolutamente diversa da outra.
No espaço de um século, a realidade do mundo estará talvez a meio caminho entre estes dois modelos, mas é pouco provável que assistamos a uma crescente globalização da sociedade. Na própria Europa, a época de triunfo liberal é parte do passado. Os italianos adotaram uma solução de centro-esquerda e os alemães permanecem fiéis a uma economia social de mercado; os ingleses bem poderiam optar num futuro próximo por Tony Blair e sua equipe de centro-esquerda. Mesmo os franceses, apesar de sua confusão política atual, rejeitam de forma virulenta as ilusões liberais e exigem uma intervenção mais rígida do Estado.
Na América Latina, o papel do Estado e do sistema político parece ser cada vez mais essencial, pois o sucesso econômico da Colômbia e da Venezuela no passado não as impede de soçobrar ante a corrupção e a violência. Para o bem ou para o mal, a política faz seu regresso e as quimeras liberais desvanecem. Não deixemos mais que nos acalentem com cantigas sobre a globalização do mundo.

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