São Paulo, domingo, 14 de julho de 1996
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As máscaras seculares do 'moderno'

PETER BURKE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nos últimos 20 anos, inúmeros filósofos, artistas e sociólogos têm-se envolvido na busca de definir o final do século 20 como uma nova era -a era da "pós-modernidade". Curiosamente, os historiadores não contribuíram muito para o debate, embora a periodização lhes seja de interesse profissional.
Infelizmente, o conceito de modernidade é tão impalpável que melhor seria descartá-lo por completo. Esse círculo vicioso é recorrente. Há um certo limite para o montante de trabalho que os conceitos são capazes de processar, uma gravidade intelectual que são capazes de sustentar. Num determinado ponto, eles se vergam sob o peso ou, para usar uma linguagem menos metafórica, eles passam a ser utilizados em sentidos tão díspares e contraditórios, que acabam por impedir a análise ao invés de auxiliá-la.
O conceito de "moderno" foi empregado na Europa Ocidental de forma mais ou menos contínua desde o século 12, mas a cada século com um significado diverso. O fardo cada vez maior torna hoje impossível que um único conceito seja capaz de carregá-lo.
A história da modernidade, para nosso infortúnio, ainda não foi compilada e está repleta de ironias e paradoxos. Tais paradoxos começam pelo fato de que a própria palavra "modernus" é um vocábulo medieval. O propósito do termo, ventilado particularmente nos debates filosóficos, parece ter sido desviar a atenção às novidades, não para rejeitá-las de todo, mas ao menos para depreciá-las, associando-as a uma época inferior em sabedoria àquela dos antigos. Os "moderni", na célebre expressão de um deles, eram "anões sobre os ombros de gigantes" -os gigantes da Antiguidade.
Ao longo do Renascimento, os humanistas definiram a si mesmos por contraste ao que eles foram os primeiros a chamar de "Idade Média", um período visto como um tipo de "sala de espera" entre as glórias da Antiguidade clássica e a era do Renascimento em que supunham viver. Contudo, foi-lhes difícil decidir se o emprego do termo "moderno" referia-se a seus predecessores medievais ou a si próprios. Alguns optaram pelo primeiro, outros pelo segundo.
No século 17, o problema da equivalência ou primazia dos feitos quinhentistas em relação aos do mundo antigo tornou-se uma controvérsia de peso entre os intelectuais na França, Inglaterra e demais países, e a palavra "moderno" passou a designar um dos lados nessa "batalha dos livros". Foi nessa época que o adjetivo "novo" ganhou fama de termo respeitável, como no caso da "Nova Astronomia" de Kepler e do "Discurso a Respeito de Duas Novas Ciências", de Galileu. Os problemas persistiam. O crítico literário francês Jean Chapelain viu-se forçado a usar a fórmula contraditória "antiguidade moderna" para descrever a Idade Média, já que esse período, embora remoto, não era clássico.
Somente em finais do século 18 a "modernidade" ampliou seu significado e tornou-se o que Habermas denomina "um projeto", de vez que o futuro parecia cada dia mais maleável e capaz de ser planejado. Cresceu a confiança na possibilidade de melhorar a condição humana por meio da ação política. A proclamação do "Ano Um" durante a Revolução Francesa foi uma cisão simbólica com o passado que teve como saldo ver os antigos modernos como parte de um "ancien régime".
No século 19, as tecnologias, o conhecimento, as instituições sociais e mesmo as formas de arte podiam ser criticadas por serem "antiquadas", depreendendo-se daí que o aperfeiçoamento era infinito e o progresso inevitável, de modo que o correto e desejável em certo momento talvez não o fosse no futuro. Foi essa modernidade própria ao século 19, a modernidade da era do capitalismo industrial, das ferrovias e da Grande Exposição de 1851, que foi posta em tela de juízo por críticos culturais como Alexis de Tocqueville, Jacob Burckhardt e Fiodor Dostoiévski, para quem a idéia do "Palácio de Cristal" era símbolo de um Iluminismo superficial.
Todos nos inclinamos a pensar que a era na qual vivemos é especial e a superestimar suas peculiaridades, seus problemas, seus encargos. Ao agir assim, pilhamo-nos em plena construção de um "outro" estereotipado, em contraste a quem definimos a nós mesmos.
Autores conscientes de sua pós-modernidade tendem a formar uma imagem estereotipada do modernismo, do mesmo modo que os modernistas pelo mundo afora formam uma imagem estereotipada da sociedade tradicional.
No século 18, os que se proclamavam "esclarecidos" adotavam o estereótipo do "antigo regime" ou do "feudalismo", ao passo que os humanistas e reformadores do século 16 faziam uso de imagens igualmente "bárbaras" e "supersticiosas" da Idade Média. Era imprescindível que mitologizassem o passado para assim definir suas identidades. Mas o preço desse estereótipo é alto, uma vez que ele representa um obstáculo à autoconsciência coletiva.
Em resumo, o problema com o conceito de modernidade é que ele faz parte de uma valise intelectual já tão abarrotada de temas que é impossível afivelá-la. Será preciso abri-la e reiniciar o trabalho. Talvez essa tenha sido a intenção dos primeiros intelectuais a se valerem do termo "pós-moderno" nos anos 50 (entre eles, o crítico Irving Howe, o historiador Arnold Toynbee e o sociólogo C. Wright Mills), mas seu propósito não foi radical o bastante. Sua escolha recaiu num termo que aceitava o valor da modernidade como descrição do passado recente, ao mesmo passo que rejeitava sua aplicabilidade ao presente e ao futuro.
Porém, como tentei mostrar, o adjetivo "moderno" não tinha acepção histórica precisa, mas era antes um expediente retórico que permitia geração após geração reivindicar a primazia, legando às gerações futuras o problema de erguer reivindicações similares por outros meios. Nesse sentido, os pós-modernos da última geração estão envolvidos no mesmo jogo dos modernos, embora tenham redobrado as apostas, deixando-nos às voltas com uma interessante questão: quem será o primeiro dos pós-pós-modernos?

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