São Paulo, domingo, 14 de julho de 1996
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Rio, 13 de março de 1908

Amº. Dr. Oliveira Lima,

depois da atrapalhada carta que lhe escrevi, a correr, apenas para responder, de pronto, a sua, -voltei para casa, a tiritar de frio, sob uma temperatura de 30°(!), e passei oito longos dias em estreita intimidade com o meu impaludismo amazônico! Escrevo-lhe ainda convalescente -em falta de melhor termo, porque afinal a minha vida, aqui, é uma perpétua convalescença. E, talvez como ressaibos da febre, aí vou traçando estas linhas, cheio de tristeza. Tristeza e inveja. Uma surda e devoradora inveja do Sr., por exemplo: que tem esta alta, esta deslumbrante, esta excepcional ventura -embora seja a de milhões de homens- a ventura de não viver no Brasil. Por atenuar a minha miséria é debalde que procuro o largo coração de Renan, ou perco-me, longas horas, às voltas com as páginas maravilhosas de Diderot... "os pequenos ecos", "o binóculo", a "ordem do dia", "os de ontem", e outras criações fantásticas da incurável imbecilidade indígena, estragam-me o programa salvador. Calcule com que desapontamento ouvi ao Gastão que o Sr. lhe comunicara ir assistir a uma conferência, realizada por autêntico neto de Darwin! Só isto valeria uma viagem. Nós temos as célebres conferências do Instituto de Música -com uma repercussão mundial que vai do largo de S. Francisco à rua da Lampadosa... Ou então essas lutas políticas, que fariam o encanto dos mais despejados Raliagas da politiquice européia. E nem estas nos restam: Há uns oito dias a curiosa cisão que abrira o Palácio, desapareceu. Pinheiro, o terrível, dobrou-se diante de Carlos Peixoto, o forte. Os dois bravos antagonistas realmente não podiam prolongar a contenda, desde que se irmanavam com um só anelo: colherem o lenço de alcobaça do Conselheiro Pena. A nenhum deles lhes lembrou uma coisa que noutros países se chama opinião pública -porque lhes falta metafísica para idearem, entre nós, criação tão transcendental ou fantástica. E assim vamos engatinhando -fracos, ruim, ruinzinhos, cheios de mazelas, embirrando em desvaliosas questiúnculas, que o próprio "pavor argentino" não disfarça. Este medo é sintomático. Os homens sabem que nas próprias guerras valem menos as armas do que o caráter nacional; e trabalhado por dezoito anos de politicagem funesta, é duvidoso que o nosso tenha fortaleza para resistir à pressão formidável de uma campanha. O "Cursando Véo", onde o ponto de vista argentino de Zeballos é admirável, entrou pelo Brasil como um fluxo galvânico. Um momento de estupor; e logo depois a velha prosápia indígena, o nosso adorável heroísmo capadócio: -Prosas de gringo! Com meia dúzia de batalhões varrem-se os pampas! Entretanto, nestas expressões heróicas, sente-se o "tremolo" ou o estrangulado da voz, do medroso atravessando uma estrada suspeita e cantando, ruidosamente, para espantar os duendes que o apavoram.
Afinal, a luta argentina é menos perigosa e mais grave. É uma rivalidade a decidir-se no jogo das competências e em conflitos industriais ou agrícolas. Os que tanto se impressionam com os soldados argentinos, esquece-lhes o operário, o lavrador, e o industrial argentinos -esses, sim, terríveis antagonistas diante da nossa pobreza orgulhosa, da nossa inaptidão e da nossa preguiça. Para vencê-los não precisamos do sorteio, que tantas controvérsias agita -precisamos de uma política sadia, que restaure as esperanças dos fortes e dos bons, estimulando a alma nacional pelo regime franco do triunfo das competências... e nós continuamos, numa assombrosa seleção invertida, a guindarmos a todas as alturas os espertos felizardos vezados à lisonja, aparelhados da ciência dificílima dos cumprimentos em tempo e dos laços de gravata, impecáveis.
Mas o Sr. partiu ontem. Estou a dizer-lhe coisas sabidíssimas. Além disto, agravo-as talvez -dando a estas linhas um falso tom de despeitadas. Mas tão pouco o sou que ainda há bem poucos dias recusei, reagindo a reiterados convites do Calmon, uma comissão aí, na Europa. É exato que o fiz porque o estado de saúde do meu pai não me permitiria que fosse tranquilo. Mas por aí se conclui que nenhum desgosto pessoal me perturba. Trato de um assunto geral.
Há dias entregaram-me no Garnier o "Pan-germanismo". Levei também o que se destinava ao Barão, entregando-lhe, pessoalmente. Não sei qual a sua impressão. Naquele mesmo dia ele partiu para Petrópolis, e ainda não nos vimos. Vou ler atenciosamente o livro. Direi depois, em carta, ou pelo "Estado" a minha impressão real. O juízo crítico do Veríssimo foi fugitivo; ladeou o livro, atraído pela questão geral mais fácil. A culpa não é do nosso lúcido e inteligente amigo; é do crítico hebdomadário, obrigado a escrever a prazo certo.
A "execução" -segundo o dizer feroz de Junqueiro- de D. Carlos e do filho, despertou -como já deve ter sabido- entre nós, as rajadas mais sentimentais que ainda saíram dos prelos. "Gemeram", literalmente, desta vez... Mas os comentários seriam longos; e não devo ultrapassar esta folha.
A Saninha manda muitas recomendações e saudades a D. Flora a quem apresento os meus respeitos.
Creia sempre no

Euclides da Cunha
R. Humaitá, 61
Em tempo: todos os amigos que não o esquecem nunca, mandam lembranças e saudades.

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