São Paulo, segunda-feira, 15 de julho de 1996
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Censura e os direitos da criança na era digital

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A idéia de acoplar aos aparelhos de tevê um dispositivo que permita a censura familiar chegou ao Brasil. Nos EUA, é resultado de uma longa pregação de políticos conservadores, como Bob Dole. O próprio presidente Clinton acabou dando seu apoio à idéia de que alguns programas de tevê possam ser bloqueados pelos pais.
O projeto brasileiro ainda não pode ser considerado concluído e há hesitações em torno de alguns detalhes. O dispositivo deve ser obrigatório em todo aparelho ou poderá ser vendido separadamente? A hipótese de que seja facultativo é mais forte, no momento, pois daria às fábricas e ao consumidor o direito de opção.
Tanto nos EUA como no Brasil, onde a discussão ainda é embrionária, poucas vozes se ergueram em defesa dos direitos das crianças. Importante exceção é o artigo de Jon Katz, na revista Wired de julho. Na opinião dele, as crianças são o epicentro da revolução da informática, marco zero do mundo digital, que ajudaram a construir e entendem melhor do que qualquer um.
No seu entusiasmo, Katz afirma que as crianças são as cidadãs da nova ordem, são as fundadoras da nação digital (tudo com letras maíusculas), o que impulsiona o autor a buscar o fundamento dos direitos infantis para além da simples proteção contra o ataque físico.
- Crianças formam o único grupo em nossa sociedade sem nenhum direito político inerente, sem voz no processo político.
A alternativa que Katz apresenta para a censura familiar é uma pedagogia baseada em regras aceitas e não impostas. Seu ponto de partida filosófico é John Locke, ensaísta inglês do século 17, que defendia a participação popular nas regras de governo, um contrato social que não poderia ser rompido, sob pena de derrubada do grupo no poder.
Ao defender as crianças, Katz propõe um contrato desse tipo e acredita que uma visão pedagógica adequada pode conduzir a um tipo de infância responsável, que procura se desenvolver na escola, mantém-se afastada de drogas e realiza, com aplicação, todas as suas tarefas domésticas.
Talvez esteja aqui um dos pontos fracos de sua argumentação. O diálogo, certamente, vai gerar crianças melhores dos que as submetidas à repressão, mas, felizmente, estarão longe da perfeição que esse programa sugere. Crianças são crianças e em um livro recentemente lançado nos EUA, "As Demandas Mentais da Vida Moderna", Robert Keagan mostra como são pesadas e absurdas todas as expectativas que escola e sociedade depositam nelas, criando com isto uma infância apressada e, às vezes, até desorientada no cipoal de responsabilidades.
Mas o grande argumento de Katz, que se distancia também daquele liberalismo dos anos 60, quando tudo era permitido, aparece quando ele se pergunta se devemos educar as crianças para o mundo realmente existente, ou para um mundo fantástico que projetamos a partir de nossos medos e ansiedades.
Uma coisa parece bem definida na cabeça do autor: os conflitos culturais entre crianças e suas famílias não podem ser solucionados ampliando o sistema legal para o interior de suas casas.
Realmente é impossível para um legislador definir quando uma criança tem mais ou menos responsabilidade para tomar decisões, e além disso há uma enorme variedade entre famílias, tornando quase impossível uma decisão universal.
Há uma lei no Congresso brasileiro propondo a redução no limite da idade do consentimento sexual. Segundo esta lei, o limite seria agora de 12 anos. As entidades que trabalham com crianças já se articulam para combatê-la. Sabem que isso pode parecer até progressista em certos setores da classe média. Mas certamente vai dar um grande impulso à legitimação da prostituição infantil, tornando-se uma grande ameaça para famílias pobres e um álibi para adultos que a exploram.
Um outro aspecto que os políticos, religiosos e pais que se empolgam com a censura deveriam considerar é a capacidade de o dispositivo mobilizar o talento das crianças para encontrar saídas técnicas, em caso de resistência. E, em caso de obediência, a possível tendência que pode ser desenvolvida nelas de bloquearem e evitarem ao longo de sua vida adulta todos os temas considerados inquietantes.
Se a emancipação das crianças é inevitável na medida em que se tornam adultas, por que não prepará-las para a liberdade, a capacidade de negociar com suas fraquezas e sobreviver em um mundo imperfeito e perigoso?
A resposta positiva não significa que os pais sejam proibidos de comprar seu aparelho de censura, que não devam usá-lo se julgarem necessário. O debate deve ser amplo e aberto mas, no fundo, a decisão é do próprio núcleo familiar.
As crianças que tiverem mais acesso às máquinas, que puderem entrar na era digital com uma visão mais ampla dos instrumentos disponíveis, talvez não se contentem apenas com o lazer, mas podem ir mais adiante.
Mesmo aqueles que se coloquem contra o projeto de instalar censura nos aparelhos, não podem lhe negar esta qualidade: vai estimular o debate aberto e permitir que cada núcleo tome uma decisão bem informada. O que, no fundo, é exatamente a tática que queremos para as crianças no seu processo de crescimento.

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