São Paulo, segunda-feira, 15 de julho de 1996
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A verdade histórica

SUZANA KENIGER LISBÔA

O Brasil busca viver, hoje, de forma madura e serena, um processo de discussão e de resgate histórico das atrocidades que marcaram seu passado recente, durante os amargos anos da ditadura militar. E, para ser consequente, esse debate não pode ser limitado por juízos antecipados ou ressentimentos.
A lei 9.140 responsabiliza o Estado pela morte de 136 desaparecidos políticos e cria comissão especial para exame de novos casos, prevendo a inclusão "daqueles que tenham falecido por causas não-naturais, em dependências policiais ou assemelhadas".
Não há qualquer referência de possíveis vetos devido à biografia das vítimas, portanto, quaisquer atos e fatos ocorridos não podem ser motivo para exclusão de qualquer nome.
As versões oficiais é que devem ser julgadas, não as vítimas e seus atos. Na lista dos 136, aprovada antecipadamente, a quase totalidade é de guerrilheiros, havendo, inclusive, dirigentes de organizações de luta armada, da guerrilha urbana e rural.
Tentamos ampliar a lei no Congresso, estendendo-a a todos os mortos e desaparecidos de 1964 a 1985, considerando que todos foram vítimas das atrocidades do regime militar. Como dividi-los em categorias? Haveria alguns mais ou menos mortos? E os sumariamente executados em suas casas ou nas ruas, como agora o foram, no Araguaia, os sem-terra em luta?
Buscamos reverter o ônus da prova -devolvendo-o a quem de direito nos parece caber, o Estado-, exigindo o esclarecimento circunstancial das mortes, um atestado de óbito verdadeiro (e não formal) e o encontro dos corpos, principais reivindicações das famílias.
Reconhecida sua responsabilidade pelos atos praticados, caberia ao Esta do diligenciar para a localização dos restos mortais e não, como diz a lei, agir perante a apresentação de indícios pelos familiares.
Criticamos o tratamento dado, que transformou uma questão de interesse histórico, cujo pleno esclarecimento é exigência para a construção de um futuro democrático, em um problema apenas humanitário, envolvendo familiares e governo.
Todas essas questões, que durante anos ficaram submersas, sufocadas sob a pecha da morbidez e o pretexto de evitar discursos revanchistas, são, na realidade, fatores determinantes para que a impunidade e o cotidiano de violência sejam, hoje, marca registrada de um país que autoriza o extermínio oficial e anônimo de marginalizados e o cotidiano de tortura, muitas vezes praticada pelos mesmos elementos que a utilizaram na época da ditadura.
Nada foi modificado no texto da lei. O governo alegava que o texto enviado era o seu "limite", apesar de em momento algum definir que "limite" era esse. Ao mesmo tempo em que assimilamos a derrota, saboreamos nossa primeira conquista.
Partimos para a árdua, extenuante e desesperadora tarefa de buscar, nos poucos arquivos que nos foram franqueados, as provas para contestar as versões oficiais de suicídios, atropelamentos e tiroteios. Não nos foi dado acesso às principais fontes da época: SNI, Polícia Federal e Forças Armadas.
Os familiares, solitariamente, têm analisado documentos, laudos periciais e necroscópicos, buscado testemunhas, tentando extrair, com lentes e lupas, as marcas de tortura nos rostos crispados pela morte, assumindo, enfim, o estranho, mas fundamental, papel de reescrever a verdade histórica.
A ditadura militar mentiu. Dissemos e provamos, até o momento, em mais de 80 casos, como os de Pedro Pomar e Ângelo Arroyo, dirigentes do PC do B mortos em São Paulo, na conhecida "chacina da Lapa", cujas versões oficiais não se sustentaram frente às provas colhidas, dado que nos permite questionar todas as versões divulgadas. Não nos prestaremos a acomodar casos para o enquadramento na lei -esse ônus político não é nosso, mas, sim, do governo e do Congresso Nacional.
Mas não podemos calar frente a prejulgamentos! Não podemos aceitar que o representante das Forças Armadas na comissão especial venha a público prejulgar, defender os assassinatos cometidos ou apresentar vetos ao exame sereno dos casos de Carlos Lamarca e Carlos Marighella. Nem que este representante diga que os mortos eram "pessoas de nível muito baixo".
O reparo moral exige a revisão das versões oficiais, conforme fez o governo ao assumir sua responsabilidade pelos 136, muitos deles mortos nas mesmas circunstâncias de Lamarca e Marighella, e somente a análise dos documentos apresentados e o exame objetivo dos fatos poderão orientar os julgamentos e restabelecer a verdade.
As preferências e opiniões carregadas de rancores do passado não se enquadram no espírito do momento e, muito menos, no texto da lei 9.140.

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