São Paulo, domingo, 21 de julho de 1996
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Democratas imitam republicanos nos EUA

ALEXANDER COCKBURN

Comecemos pela grande ocasião para foto do último Dia da Independência nos EUA, 4 de julho de 1996. O presidente Bill Clinton comemorou o maior dos feriados americanos lançando ao ar um filhote de águia em meio à "selva" suburbana de Maryland.
Ele levantou a águia aos gritos de "lindo", "fabuloso". Depois, com um grande gesto final, exclamou que a preservação do meio ambiente seria uma das prioridades dos democratas na próxima campanha eleitoral.
A cena para a foto estava à disposição e a imprensa aproveitou o momento ao máximo. Minutos depois, quando os fotógrafos e jornalistas olhavam para outro lado, a águia -de nome Freedom (Liberdade)- foi atacada por duas águias-pescadoras que a forçaram a descer até as águas do rio Patuxent. Freedom precisou ser resgatada pela Guarda Costeira americana e devolvida ao cativeiro.
No mesmo dia 4 de julho, a administração Clinton, tão defensora do meio ambiente, anunciou sua vitória numa briga judicial que durou 20 anos começando a derrubar todas as árvores no monte Graham. Com isso, destruiu espécies animais em perigo de extinção, como o esquilo vermelho do monte Graham. Dois telescópios espaciais deverão ser instalados na montanha, local sagrado dos índios apaches de San Carlos. Em breve o belo monumento natural será desfigurado por laboratórios científicos, estradas, casas e coisas assim, igualmente feias.
É claro que a política sempre implica em choques desagradáveis entre ilusão e realidade, mas em momento algum nesta última geração o "teatro" eleitoreiro americano criou uma imagem mais falsa da realidade, nem as supostas escolhas oferecidas ao público americano pela eleição presidencial foram tão destituídas de sentido.
Pode-se afirmar com segurança que, nos próximos meses, todo democrata em campanha terá um discurso pronto já preparado de antemão, dizendo algo do tipo:
"Em novembro próximo, nós americanos nos veremos diante de uma eleição que possivelmente será a mais importante de nossas vidas. Se os republicanos mantiverem o controle do Congresso, será o fim de todas as liberdades que mais prezamos. Os orçamentos do Pentágono e da CIA vão dobrar. Nosso precioso patrimônio ambiental será destruído. Os fundamentalistas cristãos e a National Rifle Association (associação nacional de donos de armas de fogo) vão tornar o aborto ilegal, entregar armas de assalto a todos os adolescentes delinquentes no país, forçar cada americano a seguir seu código moral próprio e destruir a própria estrutura do governo!".
E cada candidato republicano vai retorquir que, se os democratas retomarem o Congresso e mantiverem a Casa Branca, "os casamentos homossexuais serão legalizados, a ONU vai roubar a soberania dos Estados Unidos, as Forças Armadas vão encolher até sumirem, o direito de cada americano à propriedade privada e suas oportunidades de enriquecer vão desaparecer e a República será entregue às garras de Hillary Clinton".
Programas iguais
O vigor de tais discursos -que já estão sendo proferidos centenas de vezes por dia- oculta o fato de que, numa área política enorme, as posições de democratas e republicanos são idênticas ou o inverso do que se poderia imaginar.
Nas áreas de política fiscal e monetária não existe diferença alguma entre os dois lados. Tanto democratas quanto republicanos, Clinton e Dole, endossaram com entusiasmo a idéia tresloucada do orçamento equilibrado a ser atingido em sete anos.
Os dois partidos estão de acordo em questões de comércio, como se pôde perceber pela aprovação do Acordo Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta) e o acordo que criou a Organização Mundial do Comércio. Ambos endossaram o domínio dos banqueiros privados e do banco central norte-americano. Cada um vem se esforçando para superar o outro em termos de dinheiro derramado sobre o Pentágono e os órgãos de inteligência.
No campo da política externa, os dois partidos concordam sobre as questões essenciais. Se a administração Clinton é ligeiramente mais esclarecida no tocante ao Haiti, é pior quando se trata do Oriente Médio. Em relação a Cuba, Clinton não hesitou em assinar a legislação punitiva proposta pelo senador republicano de extrema direita Jesse Helms. Na questão da destruição das redes de segurança social Clinton adotou um programa especialmente duro de cortes, proposto pelo governador republicano do Wisconsin, Tommy Thompson.
Na verdade, a palavra "liberal" (na acepção americana, isto é, "mais à esquerda") é quase inteiramente destituída de sentido na política americana atual, a não ser que voltemos ao significado que tinha no século passado no que diz respeito à política econômica e ao livre comércio.
A única diferença substancial diz respeito à postura dos dois candidatos em relação ao aborto e aos homossexuais. Clinton se mostra ansioso por atrair os eleitores homossexuais e os defensores do aborto. Sob o peso de seu contingente eleitoral cristão, Dole é obrigado a se mostrar mais discreto.
Talvez uma boa maneira de compreender a confluência dos dois maiores partidos americanos é contrastar o consenso político vigente com as políticas da administração Richard Nixon, um quarto de século atrás. Quando comparada à situação atual, a era de Nixon parece uma época esclarecida, cheia de promessas para o futuro. A maioria das pessoas ainda enxergava o governo como coisa positiva, capaz de resolver as injustiças econômicas e sociais.
Pacto social
Para esse fim, Nixon aprovou várias leis de proteção ao meio ambiente, criou a Administração de Segurança e Saúde Ocupacional e chegou a sentir-se na obrigação de repreender as grandes empresas publicamente por seu enriquecimento exagerado. O pacto social entre capital e trabalho surgido no pós-guerra, que garantia aos trabalhadores a elevação pelo menos lenta de seus padrões de vida, continuava intacto, tendo começado a se desintegrar durante o governo Carter e depois, muito rapidamente, na administração Reagan.
Hoje, em contraste, ambos os partidos menosprezam o governo, tremem aos pés do poder das grandes empresas e exortam os trabalhadores americanos a "se ajustarem à realidade da economia global". Com isso querem dizer que devem compreender que o preço da modernidade é a transferência de nossos empregos para o México, a falta de um seguro-saúde mesmo elementar, o desgaste dos benefícios oferecidos aos desempregados, a destruição do sistema de ensino público e a queda constante do salário horário real, desde o pico que atingiu em 1973, o ano em que Nixon renunciou em meio ao escândalo Watergate.
Ao evocar esse sistema bipartidário maligno, é impossível superestimar a importância do dinheiro das grandes empresas. Hoje em dia, gasta-se cerca de US$ 500 mil para conseguir uma vaga no Congresso e US$ 5 milhões para se tornar senador. O preço inicial de uma candidatura presidencial é US$ 20 milhões. O custo final sobe para US$ 100 milhões. Hoje em dia, as grandes empresas são donas do Congresso e da Casa Branca num grau que teria provocado espanto em Nixon.
Mais de cem Comitês de Ação Política (o termo usado para descrever lobbies oficiais e semi-oficiais) contribuem tanto para o líder "liberal e democrata" (e líder da minoria democrata) Richard Gephardt quanto para o "republicano de direita" Newt Gingrich (líder da Câmara dos Deputados). Nunca antes foi tão difícil distinguir Tweedledum de Tweedledee (dois personagens do livro "Alice no País das Maravilhas"). Em 1992, oito homens doaram mais de US$ 100 mil para as campanhas tanto de Clinton quanto de Bush.
Hoje, Bob Dole brinca, com razão, dizendo que tem medo de entregar cópias de seus discursos à imprensa com antecedência, pois teme que Bill Clinton as roube e faça o discurso antes dele. Outro dia, um colunista do "Wall Street Journal" fez uma lista de todas as posições republicanas de Clinton.
Revolta
Até agora, o único momento de alívio veio do populista de direita Pat Buchanan, que desafiou Bob Dole nas primárias, adotou uma linha contrária às grandes empresas, atacou o dinheiro vindo de Wall Street e os banqueiros internacionais. Buchanan também advogava posições racistas com relação à imigração, mas sua mensagem econômica básica soava espantosamente semelhante à de Ralph Nader, o defensor dos consumidores, que este ano carrega o estandarte da esquerda, como candidato independente. O escritor Norman Mailer entrevista Pat Buchanan na "Esquire" e fala numa fusão esquerda-direita contra o centro composto pelas grandes empresas.
É possível que um sentimento de revolta esteja surgindo entre a pressionada classe média americana e os trabalhadores pobres, mas por enquanto o domínio de um governo de um único partido -republicanos e democratas unidos- não enfrenta qualquer desafio sério. Em termos substantivos, fará pouquíssima diferença se Clinton ou Dole vencer em novembro, se os democratas reconquistarem ou não o Congresso ou qualquer uma das duas Câmaras.
Qualquer pessoa que duvide disso deve lembrar-se das previsões sombrias feitas em novembro de 1994, após a vitória dos republicanos e a ascensão de Newt Gingrich à presidência da Câmara dos Deputados. Hoje Gingrich é objeto de zombaria e o famoso "contrato republicano" virou pó na história do país. Enquanto isso, Bill Clinton enuncia boa parte do programa de Gingrich.

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