São Paulo, segunda-feira, 22 de julho de 1996
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Legitimação privilegiada

ALBERTO DA SILVA JONES

Uma dimensão importante que necessita ser analisada no debate da questão agrária refere-se ao problema da legitimidade e legalização dos processos de ocupação das nossas terras agrícolas: das formas e meios jurídicos e institucionais, por intermédio dos quais o Estado buscou não apenas assegurar o acesso de determinadas camadas privilegiadas à propriedade absoluta das terras, mas, sobretudo, jogar no campo da ilegalidade, logo, da marginalidade, o amplo conjunto da população que vivia de atividades agrícolas e que detinha apenas a posse da terra, dadas as características do processo de ocupação do território.
É dessa forma que muitos pequenos posseiros foram transformados em "invasores", "intrusos" e "bandidos" das terras que secularmente ocupavam. A questão fundiária foi transformada em problema de "segurança nacional" e, mais recentemente, em caso de polícia.
É preciso deixar claro que a propriedade da terra, no Brasil, funda-se num processo de legitimação privilegiada e juridicamente questionável. Não posso acreditar que alguém desconheça que a ocupação das terras brasileiras sempre foi fundada na violência, no privilégio e na ilegalidade. Muito menos quando se tratam de especialistas que ocupam altos escalões do governo.
Seria ridículo se não fosse trágico. Trágico não apenas para os excluídos do campo. Trágico para o nosso desenvolvimento econômico e político, porque esse processo de expulsão dos brasileiros da terra é também de exclusão de sua cidadania.
No tempo da reconquista do pequeno reinado português, a prosperidade territorial amplia-se fundada nas "presúrias", ou seja, nas terras reconquistadas aos árabes: "ocupação das terras sem dono, das terras que, por conquista, tinham passado a fazer parte da propriedade real."
Pacificado o reino, as "presúrias", que eram uma espécie de presa de guerra, passam a ser disciplinadas pelo instituto das sesmarias, que visava possibilitar a colonização das terras conquistadas e impor o seu aproveitamento.
Residência habitual e exploração efetiva passam, desde então, a fazer parte das exigências legais para manutenção da propriedade.
As terras ocupadas ou apropriadas, e que não estivessem aproveitadas, eram confiscadas e ulteriormente redistribuídas a quem as explorasse. Portanto, manter a terra inexplorada era crime punido com o confisco. No Brasil chega a ser considerada condição essencialíssima para legitimação a cultura efetiva do solo e a residência permanente; sendo vedada a cessão, onerosa ou não da terra a terceiros, que cabia apenas aos prepostos reais, sendo cedida apenas sob a condição de ser explorada.
A lei 601, de 1850, a famosa Lei de Terras, ratifica essas condições enquanto prévias à legitimação, e exige a demarcação e titulação. Entretanto, nada disso é realizado, nem mesmo a medição e demarcação, sem o que era impossível a sua titulação.
É neste sentido que tornam-se ilegítimas: ou porque não foram medidas e demarcadas, ou porque as medidas e confrontações constantes nos registros não correspondem à realidade das propriedades.
Segundo Oldair Zanata, então diretor de recursos fundiários do Incra em depoimento à CPI sobre Política de Incentivos Fiscais da Amazônia, em junho de 1980, "grande parte dos títulos (de propriedade) examinados não resistem a uma análise jurídica, pois não só apresentam filiação dominial imperfeita, como os dados que estabelecem, relativos à área, limites e confrontações, não correspondem à localização física dos imóveis a que se referem."
Conclui logo em seguida, afirmando que "outro fato relevante que tem dificultado a ação do Incra diz respeito à deficiência dos registros públicos. Muitos cartórios de registro de imóveis deram ensejo a inúmeras irregularidades, algumas praticadas de 'boa-fé', outras, com a evidente finalidade de dar cobertura a invasões, num autêntico processo de grilagem de terras." Evidentemente, nenhuma dessas "irregularidades" beneficiando pequenos agricultores, posseiros ou índios.
Assim, fica evidente o caráter ilegítimo de "grande parte dos títulos" de propriedade rural no Brasil. Por outro lado, todas as leis agrárias brasileiras, desde a Carta Régia de 1375, portuguesa, sempre asseguram a propriedade àqueles que nela residem e a exploram efetivamente.
Enfim, nunca ou quase nunca se legalizou a terra neste país. Por isso, os pequenos posseiros geralmente são enxotados, e suas casas e roças queimadas, para descaracterizar as posses, impedindo a materialização de seus direitos.
Afinal, quem são os invasores e quem são os proprietários legítimos? Esta é uma questão que o governo tem de responder, legal e efetivamente, se deseja, de fato, realizar a reforma agrária no Brasil.

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