São Paulo, segunda-feira, 22 de julho de 1996
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AS LETRAS E O FÚTIL

Talvez nenhum país tenha criado uma indústria de fofocas tão próspera como a dos EUA. Reflexo, em grande medida, de um esvaziamento na pauta da mídia em relação às questões sociais. De gosto duvidoso, o culto a "gossips" vem invadindo indiscriminadamente a esfera pública, podendo produzir danos morais de difícil ou impossível reparo.
Um jornalista da "Newsweek" acaba de admitir a autoria do livro "Primary Colors", assinado por um certo "Anonymous", que faz um relato supostamente fictício, com detalhes picantes, sobre os bastidores da campanha presidencial que levou à Casa Branca o governador de um pequeno Estado sulista dos EUA. Transformada em best seller, a obra será agora também tema de filme.
As claras alusões ao trajeto político de Clinton ensejam inevitáveis dúvidas quanto à legitimidade do recurso à ficção para proteger o autor da responsabilidade por ilações menos ou mais caluniosas que possam ser feitas de sua obra. Em 95, polêmica semelhante foi desencadeada no Brasil pela publicação da biografia de Garrincha, na qual a família do falecido jogador encontrou revelações que lhe pareciam denegrir a imagem pública do craque. E, neste ano, os herdeiros de Vinicius de Moraes também interditaram a página sobre o poeta na Internet. Nesses casos, porém, há indícios de que as iniciativas dos familiares parecem movidas muito mais pelo interesse econômico. E, diferentemente do caso americano, seus autores estão desde sempre identificados e, mais ainda, assumem a fidedignidade de suas fontes.
Quanto às embaraçosas revelações envolvendo personalidades públicas, escudadas pela alegação de liberdade criativa, é provável que sua irresponsável proliferação, atenta à sedução exercida pelas fofocas sobre o público menos culto, venha a transformar o mundo das letras na mais nova presa fácil das ações judiciais.
Triste sorte a que parece reservada às biografias romanceadas ou não e à ficção no mundo contemporâneo.

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