São Paulo, terça-feira, 23 de julho de 1996
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Jogos patrióticos

RICARDO SEITENFUS

Há cem anos realizam-se periodicamente os Jogos Olímpicos, tanto de inverno quanto de verão, tendo por sentido e como objetivo a confraternização entre os povos. Em 1896, pensou-se que guerras, conflitos, rivalidades e força seriam deixados de lado durante as Olimpíadas.
Reinariam, enquanto se desenrolassem os Jogos, o entendimento, a cooperação, o conhecimento mútuo e a solidariedade. Segundo seu idealizador, o barão de Coubertin, fundamental é a competição, não a vitória. Frente a esse ideário, o espetáculo que hoje se apresenta conserva tênues lembranças da filosofia olímpica original.
O mercantilismo tomou as rédeas dos Jogos. As cifras envolvidas somam bilhões de dólares. A publicidade dos acessórios desportivos transformam os atletas em homens-sanduíche, cobertos por anúncios. O marketing associa, descaradamente, o consumo de certos produtos aos Jogos. Os suvenires convertem-se em inesgotável fonte de lucro. Não fosse lamentável, seria cômico ver os comerciais do televisor, do automóvel, do supermercado, da banana oficiais da Olimpíada.
O olimpismo era sinônimo de amadorismo, uma espécie de amor pelo esporte e pelo encontro que ele oportuniza. Contudo os profissionais já desbancaram os amadores. A equipe de basquete dos EUA e a de futebol do Brasil, por exemplo, possuem somente atletas profissionais, alguns deles "mega-stars". A profissionalização atinge todas as modalidades, em geral com o beneplácito do Estado.
Especificamente, existem os atletas profissionais do Estado. Nesse caso, há contradição entre o baixo grau de desenvolvimento econômico de certos países, como Cuba e a antiga Alemanha Oriental, e o seu extraordinário desempenho esportivo. Utilizou-se, e muito, o esporte como meio de propaganda de regimes totalitários, inclusive da própria URSS à época da Guerra Fria.
Por ora, estamos diante de um outro tipo de estratégia, bem menos direta. No caso do Brasil, os atletas não são profissionais do próprio Estado. Mas, onde tanto se apregoa o valor da economia de mercado e a participação da iniciativa privada, vê-se a delegação brasileira desembarcar nos EUA com o maior efetivo de sua história, quase totalmente financiado, como demonstrou reportagem desta Folha, com recursos de empresas públicas. É o velho ideário de que o esporte melhora a imagem do país e amaina a dureza da vida nacional.
O problema mais grave é que os concorrentes parecem estar numa corrida cega pela vitória nacional. Os atletas não são apresentados como homens e mulheres em busca de uma superação e de sua realização pessoal. Ao contrário, é a nacionalidade, a cor da pele, a raça, a religião que permitem a vitória.
Assim os Jogos acabam reforçando o racismo, a xenofobia, o nacionalismo e a intolerância, cultuando os valores que, na origem, tentavam combater. Nesse vale-tudo, os amadores oriundos de países sem recursos, em exíguo número, serão, salvo honrosas exceções, meros figurantes a protagonizar anedotas e sarcasmos.
A mídia brasileira deslocou importantes meios materiais e humanos para os EUA. Nesse ranking, perdemos somente para o Japão. O circo está armado, e seremos bombardeados, horas a fio, para que nos convençam a cultuar os novos deuses. Já conhecidos ou não, teremos que tomá-los como representantes do nosso povo, mesmo que eles por vezes pouco tenham a ver conosco.
O próprio comercial do Banco do Brasil mostra que somos um dos poucos países a divulgar os Jogos não pelo evento, mas pelas medalhas. Os atletas e a mídia, de fato, só falam em medalhas ou chances de medalhas. Somos obrigados a torcer, a chorar, a vibrar, a acompanhar resultados, painéis, rankings, a admirar, a comprar... Que diferença faz isso mesmo para o Brasil?
Caso parte da atenção da mídia e do apoio financeiro do governo fossem voltados para os graves problemas que assaltam nossa população, teríamos certamente condições de nos emocionar e comemorar por um Brasil um pouco melhor.
Todavia, durante esse período, se não estivermos ligados na Olimpíada, seremos derrotistas, caretas, frios, de oposição, ranzinzas, desportistas frustrados.
Fernando Henrique dirá que queremos o mal do Brasil. A ordem do dia é o nacionalismo barato. Mas afinal, deve pensar o presidente, o que um povo tão caipira pode almejar de melhor do que o pão e o circo?

Ricardo Antônio Silva Seitenfus, 48, doutor em relações internacionais pelo Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais de Genebra, é coordenador do mestrado em integração latino-americana da Universidade Federal de Santa Maria (RS).

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