São Paulo, sábado, 27 de julho de 1996
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Cinismo olímpico

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Os cínicos insistem em ver jogadas de esperteza em tudo. Do que se tem visto no mundo moderno é possível que tenham razão, pois até o cinismo e o ceticismo podem ser uma jogada. A comunicação social, num exemplo mais próximo, para satisfazer sua obrigação essencial (informar corretamente), deve descrer das versões e apontar, por trás de atos aparentemente sadios, as jogadas da esperteza. Isso a leva, às vezes, a fazer escândalo com as que não ocorrem, mas esse é o preço que o cinismo e o ceticismo jornalístico pagam na jogada industrial da comunicação.
As reflexões precedentes nasceram durante os Jogos Olímpicos, em Atlanta, nesta semana, da abertura à desorganização eletrônica, do trânsito confuso às vitórias e derrotas. Pode não parecer, mas há pertinência do tema com a ciência jurídica, a contar do tratamento dado, na festa de abertura, às minorias e aos discriminados. Depois, com a igualdade globalizante, melhorando oportunidades na luta pelo resultado.
Na abertura, predominou a presença das mulheres, com solos de canto por vozes femininas, trazendo duas negras nos números principais (Gladys Knight e Jessie Norman). A dança coletiva girou ao redor de uma imensa e branca borboleta-mulher.
A raça negra apareceu nos porta-bandeiras militares, nos condutores do pavilhão olímpico e, de modo muito especial, na figura trêmula e nobre de Muhammad Ali (idoso, com mal de Parkinson, da minoria muçulmana), ao acender a tocha olímpica. O saltador de plataformas Louganis, incluído nas homenagens aos antigos medalhistas de ouro, é homossexual e portador do HIV. Os outros lembrados, exceto Nadia Comaneci, bonita, elegante, e Leon Stukeli, agitado e lépido esloveno, mostraram o peso do tempo.
Na abertura, a igualdade dos resultados foi precedida pelo tratamento das grandes massas humanas, de crianças e adultos, de raças e credos diferentes, no aplauso aos antigos e aos atuais inimigos. Surgiu na caminhada breve, mas luminosa, do negro pugilista peso-pesado da superpotência atual, ao lado da pequenina maratonista grega e branca, da grande potência do passado, base de todo pensamento filosófico do saber humano, carregando ambos, juntos, depois de se beijarem, a chama olímpica.
O cuidado com as minorias não pode ter sido coincidência. Se fosse transposta para a Constituição do Brasil, a festa de abertura dos Jogos Olímpicos seria considerada um exemplo de cumprimento dos artigos 1º (a dignidade da pessoa humana como fundamento da democracia) e 2º (criação de uma sociedade livre e solidária, que erradique a marginalização e reduza as desigualdades sociais, promovendo o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação).
Mas há que ser cínico e cético. A continuidade dos jogos mostrou multidões perdidas no trânsito, desastres, dificuldades. Atlanta, por si mesma, é a cidade de maior índice de criminalidade dos Estados Unidos, sendo de negros a maioria dos acusados. Ali foi assassinado Martin Luther King. O Estado da Georgia tem história marcada pelo racismo.
A sede dos jogos pode ter sido uma jogada para disfarçar as discriminações da superpotência. Fico, porém, na esperança de que -qualquer que tenha sido a intenção dos organizadores- os positivos aspectos humanos do espetáculo repercutam bem nos bilhões de pessoas que o viram e vêem em todo o mundo.

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