São Paulo, segunda-feira, 29 de julho de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Por acaso existirão os brasileiros?

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O brasileiro é caipira. O brasileiro não é caipira. O que é um caipira? Mais uma polêmica rondando as mesas dos bares, as conversas de esquina.
O verso de Drummond (por acaso existirão os brasileiros?) coloca uma questão de fundo, que congela o debate de tal forma que só podemos prosseguir decifrando esse claro enigma.
Há alguns anos isso parecia resolvido. Os brasileiros não existem. Isto é, os brasileiros não têm um caráter nacional. Ninguém tem caráter nacional. Nem os americanos, nem os gregos.
Os brasileiros assim no conjunto, com traços psicológicos definidos, são um retrato idealizado. Às vezes um retrato do colonizado feito pelo colonizador. O senhor pensa o geral, o escravo está preso ao concreto, os europeus e norte-americanos pensam um mundo e os outros estão condenados à visão local.
No Brasil do fim do século 18 lia-se muito teoria francesa, a história da independência americana. Esmagou-se a Inconfidência Mineira. O único registro que a imprensa inglesa fez sobre o mundo lusitano, entre 1779 e 1781 foi uma breve menção a Lisboa:
"Eles não se importam em derramar água, fazem pipi em cima da gente, quando passamos", escreve o articulista da revista "Gentleman".
Essa ansiedade liquefeita é, no fundo, uma atitude tradicional. O medo diante da desorganização, da sujeira. Pureza e perigo e o título de um clássico da antropologia que analisa a insegurança diante de uma outra ordem.
Só mesmo esse primeiro contato entre europeus e outros povos poderia gerar essa descoberta, essa relação entre limpeza e inconsciente.
Desde menino, ouço dizer que as bolivianas não usam calcinha. Na Alemanha ouvi dizer que negros não usam roupa de baixo. E finalmente, agora, no fim do século vejo o furor que Sharon Stone desencadeia ao cruzar as pernas sem calcinha e me pergunto sobre quem se fala, quando falamos dos outros. De repente, surge esse debate estranho no Brasil, editoriais exaltados, discursos no Congresso. Outros fantasmas como esse dos brasileiros já vagaram pelo mundo.
Edward Said, por exemplo, resolveu investigar o conceito de Oriente e descobriu que era, na verdade, uma quase invenção dos ocidentais, um fantasma produzido pelos cérebros dos viajantes, escritores e estudiosos.
No meio da década dos 50, dizia-se que os mineiros compravam bonde. Os bondes já saíram de circulação, e um número considerável de mineiros mudou do país, tentando a vida em cidades cosmopolitas como Nova York. A economia de cidades como Governador Valadares anima-se com os dólares mandados pelos imigrantes.
O fato de não existir um caráter nacional, de não existirem portanto os brasileiros, não significa, é claro, que vamos instituir as milícias do cientificamente correto.
Todo mundo pode continuar dizendo "ah, os brasileiros são preguiçosos, sentimentais, barulhentos" -enfim, cada um escolherá o adjetivo que quiser empregar.
O ideal seria o presidente só se referir aos brasileiros, de um modo geral, com expressões menos polêmicas e as pessoas sofrerem menos com as frases do presidente. Mas aí talvez não fosse tão divertido.
Em um mundo onde quase não se discute mais, onde as esquinas se esvaziam de noite, qualquer frase estimula a eterna busca de identidade: quem somos nós, de onde viemos, para onde vamos?
Alguma coisa mais séria, mais produtiva, poderia ser produzida de tanta energia gasta em debates, comentários e choros. Mas afinal não temos de acertar sempre, não somos de ferro. Ou somos? Vamos esperar que o presidente revele um novo traço de nosso caráter.
Como nos lugares de atração turística, vamos sentar pacientemente em um banquinho enquanto o retratista esboça os traços desse gigantesco fantasma, os brasileiros.
Nesse ponto, temos evoluído: presidentes não criam mais fantasmas como antigamente. Para nossa felicidade, já não são mais ficções bancárias destinadas a captar o dinheiro da corrupção, agora são simplesmente imagens, nebulosas como uma piada de português, delirantes como a crença de que todos os japoneses se parecem, os franceses não tomam banho, e as louras não gozam.
Vamos esperar a última do presidente. Que Deus o mantenha, pelo menos, com um certo humor. É quase tudo o que resta nessa aventura pelos labirintos do poder e do palácio da rainha da Inglaterra.

Texto Anterior: Espetáculo muda rotina dos atores mirins
Próximo Texto: Texto inédito de Plívio Marcos é lido pelo ator Marco Ricca
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.