São Paulo, segunda-feira, 29 de julho de 1996
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Deficiências em vigilância sanitária

VICENTE AMATO NETO; JACYR PASTERNAK

É sensato criar no Brasil algo que seja semelhante à FDA, que é uma agência bem organizada
VICENTE AMATO NETO
e JACYR PASTERNAK
Da estrutura governamental que deve efetivamente e de forma competente gerir a saúde pública é obrigatório que faça parte a vigilância sanitária.
Trata-se de componente que precisa cuidar da segurança, em termos de qualidade e respeito às normas, dos alimentos, dos reagentes ou técnicas usadas em provas para diagnóstico, incluindo a seleção de doadores de sangue e dos medicamentos. O setor em questão é destacado no contexto de programas que dirigentes jamais podem deixar de elaborar com cuidado.
No Brasil, excluída a ação benéfica de poucos idealistas, a vigilância sanitária é exercida de maneira incipiente, incompleta e desordenada. Quase sempre só surge em cena após denúncias de órgãos de divulgação ou na vigência de eventos catastróficos. As providências não são permanentes ou preventivas e, em geral, independem de programações bem delineadas, dignas de obediência, sendo que as deficiências ficam explicadas pela escassez de recursos.
Apenas no momento atual, quatro contratempos preocupam e assustam a comunidade. Referimo-nos à constatação de que seleções de doadores de sangue são impróprias em determinados serviços de hemoterapia, à utilização de prova insegura para revelar infectados pelo vírus que causa a Aids, às mortes de pessoas hemodialisadas em Caruaru, ao desencadeamento de efeitos adversos por preparação vacinal antimeningocócica produzida no país e ao vergonhoso acontecimento consumado em espelunca que mal albergava cidadãos idosos no Rio de Janeiro.
Impõe-se tentar progredir concretamente, tornando cada vez mais inviáveis equívocos como os citados.
Existe evidente desentrosamento global, corrigível por meio de coordenação mediante adequado planejamento, capaz de estruturar o sistema, valorizando organismos já implantados, respeitando particularidades nacionais e antevendo avanços; é imperioso acertar os níveis de competência no bojo do SUS (Sistema Único de Saúde), levando em conta hierarquização e integração, definindo as atribuições federais, estaduais e municipais.
Está tardando o aumento do número de laboratórios de saúde pública, como outrossim cabe melhor apoio aos presentemente instituídos; o controle de qualidade em saúde exige a disponibilidade de condições suficientes, pois o panorama atual revela precariedade e mostra até descompasso, exemplificado por informação dada por certa autoridade, segundo a qual o Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde não faz parte do Ministério da Saúde, como se a Fundação Instituto Oswaldo Cruz correspondesse a algo sem nexo com o citado compartimento governamental.
Permanece no país desbragado charlatanismo em termos de tratamentos, com a ajuda de promoções escancaradas, englobando muitas vezes a permissibilidade de emprego de métodos rotulados como alternativos, sem o indispensável respaldo científico.
Aduzimos suplementarmente a complacência quanto à utilização de mezinhas, como plantas ditas medicinais, remédios homeopáticos, nunca submetidos a estudos calcados em metodologias confiáveis. Interpretamos como sensato criar órgão semelhante à FDA (Food and Drug Administration), dos EUA, que é bem organizada. Proposição desse naipe foi apresentada por um de nós, após pedido, a assessores de candidato vitorioso à Presidência da República, em campanha eleitoral, com posterior esquecimento.
As desagradáveis ocorrências que ainda persistem como notícias destacadas servem, esdruxulamente, para meditação e estímulo no sentido de conceder atenção à vigilância sanitária, peça relevante ao lado de orçamento satisfatório, instalação cabal do SUS, justa política pertinente a medicamentos, ajuda à rede de hemocentros e busca de assessoramentos desinteressados proporcionáveis por cidadãos.
Tudo isso embutido no figurino que constitui alicerce básico, composto por promoção da saúde, prevenção de doenças, diagnóstico com tratamento e atenção referente às sequelas ou reabilitação profissional.

Vicente Amato Neto, 67, infectologista, é professor titular e chefe do Departamento de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo).

Jacyr Pasternak, 53, infectologista, é médico-assistente da Divisão de Clínica e Moléstias Infecciosas e Parasitárias do Hospital das Clínicas da USP.

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