São Paulo, terça-feira, 30 de julho de 1996
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O cavalo do português

ANDRÉ LARA RESENDE

A política cambial talvez seja o aspecto mais controvertido da política econômica. A decisão de deixar o real se valorizar na partida foi muito criticada. Sem intervenção do Banco Central e dadas as altíssimas taxas de juros internas, o influxo de capitais levou a uma apreciação do real até 83 centavos por dólar.
Pessoalmente considerei a decisão positiva. Talvez a valorização tenha sido excessiva, mas foi positiva. O aspecto psicológico da nova moeda que se valoriza foi importante para a sua credibilidade. Mas importante mesmo foi quebrar, a favor do real, a paridade de um para um introduzida pela URV.
Nas fases avançadas da inflação crônica, a moeda nacional começa a ser substituída pela moeda estrangeira. No nosso caso, o sofisticado e difundido sistema de indexação até que impediu o avanço mais rápido da dolarização.
Todos se lembram que muitos preços, de imóveis a serviços médicos, eram cotados em dólares. A valorização levou a uma imediata conversão para reais. Um para um, é óbvio -afinal, a falsa esperteza é mais um fenômeno que acompanha a inflação crônica. Mas o resultado foi a reversão da dolarização incipiente.
A grande vantagem dessa reversão é que -quando consolidada- permite recuperar um poderoso instrumento: a possibilidade de desvalorizar. De desvalorizar sem que o resultado seja exclusivamente um surto de inflação. Caso contrário, só restaria a alternativa de mais desvalorização, mais inflação e assim por diante, numa corrida entre o câmbio e os preços.
O programa vizinho, por exemplo, tem um problema grave. Diante da dolarização avançada, a Argentina resolveu estabelecer constitucionalmente uma paridade de um para um e oficializar a circulação do dólar. O objetivo era claro: ganhar logo a credibilidade destruída por anos de irresponsabilidade fiscal e monetária.
Os custos só agora se fazem sentir. No quinto ano do programa, depois de um extraordinário esforço de reorganização da economia, a inflação está controlada, mas a camisa-de-força da paridade fixa impõe limites intoleráveis ao crescimento e ao emprego.
Não adotamos nada parecido com a solução argentina. Desde abril do ano passado, o Banco Central tem desvalorizado gradualmente o real. A desvalorização tem sido sistematicamente inferior à inflação. E assim deve ser.
Conjugada à reorganização das finanças públicas, depois de um breve e inevitável período de valorização da moeda, a inflação convergiria para os níveis internacionais.
Essa convergência não pode, entretanto, demorar indefinidamente sob pena de criarmos uma sobrevalorização complicada de ser revertida. Acelerar as desvalorizações não é alternativa. O ritmo da reorganização das contas públicas é que precisa ser mais rápido do que temos conseguido.
Confiar apenas numa desvalorização inferior à inflação corrente para fazê-la convergir aos níveis internacionais lembra a história do cavalo do português: decidido a ensiná-lo a trabalhar sem comer, nosso bom homem passou a reduzir sistematicamente sua ração alimentar.
Tudo corria às mil maravilhas; o cavalo emagrecia, mas continuava a trabalhar. Quando já estava quase aprendendo, reduzido a uma dose mínima de alimento, morreu.

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